Diário do Alentejo

Fernando Fitas: "O Alentejo perpassa por toda a minha obra (...) admito que seja uma segunda pele"

24 de setembro 2022 - 09:00
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Define-se como “um maltês que não aceita facilmente nenhum tipo de disciplina imposta, não professa nenhuma religião, não milita em nenhum partido político, não frequenta nenhuma “capelinha”, nem é adepto de nenhum clube de futebol.” Diz-se simpatizante apenas do clube da terra onde nasceu e isso basta-lhe.

 

“Parafraseando um amigo de infância, sou um “revoltilho”, postura que assumi desde tenra idade, segundo o que dizem os vizinhos dos tempos de meninice.”

 

Em suma, considera-se um cidadão incontrolado, que nasceu em Campo Maior no ano de 1957, e que no início dos anos 70 do século passado rumou, com os pais, para a grande Lisboa, residindo inicialmente na capital, depois em Almada e nas últimas décadas no Concelho do Seixal. Jornalista de profissão, começa a sua atividade em 1975 no jornal “O Século” e prossegue a carreira noutros periódicos de âmbito nacional e regional.

 

Paralelamente ao jornalismo, dedica-se à denominada escrita poética, ocupação que se torna exclusiva a partir do ano de 2011, valendo-lhe, entre outros, a conquista, do Prémio Raul de Carvalho, Prémio de Poesia e Ficção de Almada, Prémio de Poesia Cidade de Ourense (Galiza), Prémio Tito Olívio, Prémio Manuel Maria Barbosa du Bocage e Prémio Internacional de Poesia, António Salvado –Cidade de Castelo Branco.

 

Alguns dos seus trabalhos estão traduzidos para Castelhano, Mirandês e Italiano, e, a convite dos organizadores, participou em encontros internacionais de poesia, nomeadamente no PAN – Encontro Transfronteiriço de Poesia, Arte e Património em Meio Rural, Morilles (Espanha) “Poesia A Sul - Festival Internacional de Poesia”, SIAC – Simpósio Internacional de Arte Contemporânea (Guarda) e Encontros de Poesia e Música João Rois de Castelo Branco.

 

Companheiro dos cantores da resistência José Afonso, Francisco Fanhais e Vitorino, na Cooperativa Cultural Era Nova, tem poemas cantados por alguns intérpretes da canção portuguesa, designadamente Chiquita e Luísa Basto.

 

Eis o poeta Fernando Fitas na primeira pessoa.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

O despertar para a escrita ocorreu quando frequentava a terceira ou quarta classe. À época, o estabelecimento de ensino onde estava possuía uma tipografia na qual era impresso, mensalmente, o jornal da instituição, sendo este constituído pelas melhores redações que os alunos escreviam nas aulas de Português. Tive a fortuna de ver algumas publicadas e de me deparar com o meu nome em letra de forma. Neste contexto, direi que tal descoberta se deveu sobretudo ao professor que lecionava a disciplina.

 

Com intervenção em várias valências da escrita, existe algum registo de eleição?

Não tenho um registo de eleição. Desde logo, porque são formas de escrita diferentes. A jornalística obedece a umas regras e a ficção e a poesia, ainda que usando como ferramenta a palavra, obedecem a outras. Aliás, algumas vezes usei a linguagem poética como forma de pousio, o mesmo é dizer, descansar do discurso jornalístico. No que concerne à ficção fiquei-me pelos “Cantos de Baixo”, uma pequena novela que aborda os problemas sociais com que o Alentejo se confrontava nos anos 50 e 60 do século passado, recuperando algumas memórias de infância, mas não me atrevi a mais, porque é um domínio que exige uma “estaleca” que me ultrapassa.

 

Onde se vai beber inspiração para as palavras?

A inspiração, e muitas vezes a transpiração, resultam da observação ou do conhecimento de situações que colidem com a minha forma de encarar a sociedade e o mundo, as quais me levam a assumir uma postura, nuns casos, de denúncia, quando se trata de questões sociais, área em que me sei particularmente sensível, noutras, de critica, quando o que está em causa são valores e princípios.

 

Em que consiste e que objetivos norteiam o trabalho de recolha de oralidades desenvolvido na margem sul do Tejo?

O trabalho de recolha oral realizado para a Câmara do Seixal ao longo de quase uma década assenta num projeto que apresentei à autarquia visando a preservação das memórias e vivências dos associados mais antigos das coletividades locais e dos seus ex. dirigentes, em ordem a evitar que esse património imaterial desaparecesse com a sua morte. Através das inúmeras conversas gravadas com eles, acabamos por obter um retrato sociológico do Concelho até abril de 1974, tanto em matéria de infraestruturas, meios de comunicação, formas de entretenimento, ocupações laborais e, por essa via, das condições sociais da população, assim como as dificuldades de natureza política com que se debatiam, decorrentes do regime ditatorial que vivíamos. Talvez por isso, quer Fernando Rosas, quer Moisés espírito Santo, recomendavam aos alunos a sua consulta, sempre que realizavam trabalhos sobre o movimento associativo.

 

Que papel desempenha o Alentejo na escrita de Fernando Fitas?

O Alentejo perpassa por toda a minha obra, ainda que com exceção de “Amor maltês” e “Cantos de baixo”, não tenha essa preocupação, mas reconheço que nos meus livros ele está sempre como pano de fundo. Admito que seja uma segunda pele. Isso mesmo constatei quando, em 2018, o grupo de teatro “O Grito” entendeu montar uma peça intitulada “Sementeira”, para assinalar a passagem do 40º aniversário da publicação do meu primeiro, espetáculo, cuja antestreia ocorreu em Morille – Salamanca. Trata-se de um trabalho que tem muito a ver com o Alentejo, fundado na junção de fragmentos dos livros publicados até essa data, efetuada por José Vaz de Almada, o qual percorreu vários municípios da Margem Sul.

 

Que ligações mantém ao Alentejo?

Apesar de ter vindo para a área de Lisboa muito novo, sempre mantive uma forte ligação ao Alentejo, região à qual volto regularmente. Em dada altura, voltava para visitar os meus pais quando eles regressaram, e agora para descansar e desfrutar da quietude que a casita que lá possuo me proporciona.

 

Dos trabalhos desenvolvidos ao longo do percurso, alguns que sejam mais marcantes?

É-me difícil referir qual dos trabalhos que realizei foi o mais marcante, atento o período e o contexto em que foram efetuados. Todos me deram imenso prazer. Em todo o caso, deduzo que “A casa dos Afetos”, Prémio Raul de Carvalho, e a “Elegia dos pássaros”, vencedor do Prémio Internacional António Salvado, sejam os que me fizeram acreditar na validade das coisas que escrevo.

 

Que importância tiveram as distinções literárias no consolidar da carreira literária?

As distinções atribuídas a trabalhos que enviei sob pseudónimo a diversos certames de poesia, acabam por se constituir num estímulo, para que não desista ante as adversidades.

 

Alguma situação inusitada experimentada ao longo do percurso de autor?

Uma ocasião fui participar num evento para o qual uma autarquia me convidara. Era Inverno. Fiz a viagem em transporte público e ao contrário do que estava previsto, posto que chegava de noite, esqueceram-se de mim. Ia ficando ao relento. Valeu-me um amigo que, por acaso, residia naquela localidade. O que prova que os poetas são facilmente esquecidos.

 

Qual a opinião sobre o universo literário em Portugal?

Tenho uma postura semelhante à de um eremita, pelo que a minha visão do universo literário me passa um pouco à margem, visto que é ditado pelos interesses dos dois grupos editoriais que dominam o mercado livreiro. Tal significa que se ignore alguns bons valores, tanto no domínio da ficção, como da poesia.

 

E o acordo ortográfico?

O acordo ortográfico é uma aberração.

 

Como vive e convive um poeta com as convulsões atuais do mundo?

Os poetas, presumo, convivem mal com as atuais convulsões. Pelo menos eu convivo muito mal.

 

Que sonhos literários moram em Fernando Fitas?

Os meus sonhos resumem-se a expressar sempre, ainda que de forma poética, a minha opinião.

 

O que está na “manga”?

Tenho alguma poesia escrita nos últimos anos que eventualmente reunirei em livro.

 

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