Diário do Alentejo

Rui Aragonez Marques: "Todos os que me circundam podem vir a ser personagens"

27 de agosto 2022 - 10:00
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Rui Manuel Aragonez Marques, professor e escritor, nasceu em Portalegre no ano de 1957. O professor Rui fez parte da primeira equipa de técnicos do Ministério de Educação que, após a Constituição da República de 1976, lecionaram nos Institutos do Serviço Tutelar de Menores do Ministério da Justiça, mais propriamente, no Instituto de Reeducação de Vila Fernando (Elvas) e São Bernardino (Peniche).

 

Posteriormente, integrou a Direção Geral do Ensino Básico nos 15 concelhos do Distrito de Portalegre, ao que se seguiu, como professor destacado, o Projeto de Luta contra a Pobreza do Concelho de Elvas. Da telescola guarda memórias de aluno e de professor. Na década de 80 fez parte dos Bombeiros Voluntários de Portalegre, da Direção do Rancho Folclórico da Boavista e da Sociedade de Instrução e Recreio de Elvas.

 

Por terras de Espanha foi professor de língua portuguesa na Universidade da Extremadura, ministrou cursos de português para estrangeiros e desenvolveu múltiplas atividades ligadas à língua pátria por terras de Castela, com destaque para várias traduções efetuadas, incluindo as do Museo Arqueológico de Badajoz. Os três anos de trabalho desenvolvido do lado de lá da fronteira valeram-se uma homenagem pública no ano de 2001.

 

De regresso a Portugal, foi a Setúbal que atracou para prosseguir a ligação ao ensino. Uma ligação que, no ano seguinte, havia de se fazer no Agrupamento de Escolas de Campo Maior. E foi por lá que permaneceu até à chegada da troika e da austeridade de um governo empenhado em equilibrar as contas à custa dos portugueses. Rumou, então, a Timor-Leste, por onde ficou durante cinco anos, regressando a Portugal e a Campo Maior, por onde se mantém agarrado ao ensino.

 

O escritor Aragonez Marques é autor de romances, livros infantis e canções para crianças. Da sua vasta bibliografia, destacam-se as obras: Uma Aventura no Ciclo da Água (2001), edição bilingue (português castelhano); As estrelas do Avô de Manuel (2003); Três Contos Trípteros (2004); Mariana ou a Andorinha Filha da Liberdade (2005); Margens de um Rio Violento (1997, reeditado em 2019 por Filigrana Editora); Retratos de Gente em Procissão (2012); A Mulher do Sargento Espanhol, distinguido com Menção Honrosa na Primeira Edição do Prémio Literário Joaquim Mestre, promovido por Assesta – Associação de Escritores do Alentejo e editado por Filigrana Editora em 2018.

 

Para além dos livros publicados, tem participação assídua na imprensa regional, é coordenador de conteúdos da revista “Noudar” (Espanha), e assina uma crónica mensal “Do nosso Cantinho para o vosso Cantão”, na revista “Lusitano de Zurique”.

 

Texto Luís Miguel Ricardo 

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras? Quando comecei o antigo terceiro ano, as notas, que até então eram boas, passaram a ser menos boas. Foi aí que a imaginação para justificar as faltas que comecei a dar às disciplinas que não gostava ganhou protagonismo. Protagonismo tal que, quando morreu a minha avó, os professores receberam uma informação emitida pelo Diretor que dizia: “é favor dispensar o aluno Rui Aragonez, pois parece que desta vez lhe morreu mesmo a avó”. E é no meio desta tempestade que me apareceu um professor de Português, Leonel Martins, pai do escritor Rui Cardoso Martins, e que me disse: “Conta as tuas mentiras para o papel.” Comecei a fazê-lo e as notas de Português subiram magicamente. Depois falou-me de Eça de Queirós, trouxe-me e emprestou-me o seu livro de contos, e fez de mim um leitor ávido que substituiu o Mandrake, o Major Alvega e o Buck Jones por outro tipo de leituras. Dois anos depois acabei o quinto ano do Liceu, mas já com uma grande maturidade e muitas leituras. Quando descobri Gabriel Garcia Marques na minha cidade de Portalegre, que tinha uma Biblioteca no Jardim, li tudo, evoluí, muito mais quando deixei de ter as disciplinas de Ciências e pude escolher Letras. O meu pai colocou-me finalmente no Liceu, e julgo que por saber que o Doutor Leonel Martins era lá o professor de Português. Fomos amigos, ao ponto de ter estado presente, cantando num coro de antigos professores, na apresentação do meu último livro. Morreu pouco tempo depois. Foi a última vez que o vi.

 

Qual o registo literário de eleição? Obviamente o romance, o conto, a prosa. Tenho imensa inveja dos poetas que conseguem, em meia dúzia de linhas, escrever o que eu levaria um capítulo a fazer. Às vezes zango-me com a minha mulher, a Amelia, que faz um poema como uma fotografia e eu precisaria de muito mais tempo e espaço para dizer, e talvez não o conseguisse, o mesmo. É gente virtuosa, talento sublime. Considero-me, talvez por isso, não um homem da literatura, mas apenas um bom contador de histórias.

 

Quais as fontes de inspiração para a escrita? Hoje, mais do que nunca, as vivências que tive. A inspiração é um impulso que começa muitas vezes num guardanapo de um café. Mas sou um perigo, muitas vezes um “cusco”, quando tomando o meu café, estou atento às conversas da mesa do lado. Todos os que me circundam podem vir a ser personagens.

 

Que papel desempenha o Alentejo na literatura de Aragonez Marques? Gosto de ser alentejano, mas não utilizo o Alentejo como ponte central das minhas novelas, notando, no entanto, que volto sempre a ele nem que seja em referências. Agora ser alentejano é para mim a fita métrica que é a base de comparação com as outras culturas que conheço.

 

E as vivências pela cultura oriental? Experiências que me revolvem primeiro o corpo, como quem despe a roupa, neste caso a pele, e que viraram e fizeram ver o seu avesso. O umbigo desapareceu, ficou dentro, e todo o meu mundo ficou sem o meu umbigo como parte central da minha vida. A lua deixou de ser mentirosa, de ter quatro quartos, e nascia como um pequeno barco que ia inchando até se fazer lua cheia. Pedi à minha mulher que olhasse a estrela polar no sábado, com as nove horas de diferença e a essa hora estaríamos a olhar para a mesma estrela perto um do outro. Idiota. Não encontrei a estrela polar, no hemisfério sul não é visível, e é o cruzeiro do sul que guia e guiava sempre os marinheiros. Um mundo físico ao contrário que sempre julguei que o que saía do meu espaço anterior era o centro do Universo. Que o Universo girava em meu redor, em redor do que tinha aprendido até ali. Tão palerma, numa sabedoria que pensava ter adquirido, ponto assente sobre a cultura que julgava ter. Uma cultura que me tinha a mim e aos europeus como centro de tudo o que conhecia. Senti-me perdido ao sentir ter crescido com tanta ignorância e, a pouco e pouco, fui descobrindo que nem o céu era igual como também era distinta a vida das pessoas. Viviam em, não digo palhotas e invento “bambueiras”, pois os tetos eram de folhas de palmeira e as paredes de bambu. Os animais andavam pelas ruas, porcos, galinhas e uma cabra com um pau debaixo do pescoço preso na horizontal, que me levou a perguntar o motivo, pensando que fosse alguma obstrução ao acasalamento, qual quê? - Disse-me o amigo e continuou – Dorme toda a família nas “bambueiras”, os animais também e o pau é para durante o dia não caberem na porta e não entrar na “casa”. Depois havia Díli, a capital, onde nada faltava, supermercados, restaurantes, centros comerciais, hotéis, cinemas...outro mundo. Os professores podiam ir a Díli uma vez por mês, abastecer-se e embebedar-se de civilização europeia. Tínhamos tempo para tudo e nenhum dia era igual. Se fosse sexta-feira, arrancávamos para Díli, destino aeroporto, tantos países e lugares de sonho à volta: Bali, Jakarta, Vietname... todos diferentes. A cinco quilómetros de Díli era a miséria total. Aqueles meninos descalços e com a pilinha de fora, que se banhavam nas praias com crocodilos, eram os mesmos que os pais vestiam e perfumavam diariamente, e que pediam a bênção aos professores ao entrar nas aulas, depois de formarem no pátio cantando o Hino no içar da bandeira. O respeito pela escola e pelos professores era incrível. Nunca mais serei tão feliz na minha vida, junto de pessoas que eram felizes dentro da pobreza extrema. Imaginem termos dinheiro no bolso e de nada nos servir, pois nada havia para comprar.

 

Que papel têm as distinções literárias no cimentar da carreira literária de Aragonez Marques? Nenhuma, a não ser o conhecimento de várias pessoas de interesse que valorizaram a minha contínua aprendizagem. Vou confessar uma coisa, o livro que enviei ao Prémio da ASSESTA - Prémio Literário Joaquim Mestre – foi o primeiro que enviei a uma distinção literária. Esses prémios são para caçadores literários, se o tema é sobre o Alentejo, prepara-se algo sobre isso, se é sobre a Virgem de Fátima, rapidamente se inventa mais um milagre. Quem enviou o livro foi a minha mulher e só o soube quando me informou que tinha ganho uma menção honrosa. Há mais anos, mandei um conto a um concurso, tinha catorze anos. Os meus pais levaram-me orgulhosamente a receber o prémio. Lembro-me que levava um capote alentejano e quando chamaram por mim, segui vaidoso pela coxia entre as cadeiras e ao chegar à mesa, o senhor perguntou-me se eu ia receber o prémio em nome do meu pai ou de alguém de família. Disse que não, que o autor era eu, levantaram-se e trocaram impressões, de pé, atrás das cadeiras. O tal senhor, depois de se terem sentado de novo, disse ao microfone que estávamos perante um promissor escritor. O senhor chamava-se Manuel Lopes Ferreira Fonseca e era o Presidente do júri, que só quando aquilo acabou percebi que era Manuel da Fonseca. Deu-me o telefone, pediu-me a morada e disse-me: “Nunca desistas”. O senhor Manuel da Fonseca, duas semanas depois, escreveu-me uma carta dizendo que havia um concurso de contos promovido por um jornal de Estremoz chamado Brados do Alentejo. Concorri e ganhei o primeiro prémio com um conto que editei bilingue em Espanha, ilustrado, bastantes anos mais tarde, chamado “Mariana ou a andorinha filha da liberdade”. Aqui não me foi dado dinheiro, como no anterior, e que acabou num fato às riscas para o meu pai levar ao casamento da minha irmã. Deram-me, no entanto, uma taça, igual a uma que tinha ganho num concurso de pesca. O livro que enviei à Assesta falava da Guerra Civil espanhola, nada tinha que ver, ou muito pouco, com o Alentejo, e tal como disse quando falei em público, uma menção honrosa é um presente envenenado. Apenas por curiosidade, esse livro é de leitura obrigatória na Universidade de São Paulo. Quem sabe se esta informação não chegou ao Brasil pelo Prémio da ASSESTA. É por isso que considero estes prémios importantes pela divulgação dos autores.

 

 

Dos projetos desenvolvidos ao longo da carreira, algum mais marcante? Sem dúvida, as comemorações do dia de Portugal, no dez de junho de 2019, quando o Presidente da República, amante de livros, decidiu ter um escritor em todos os países onde se comemorava oficialmente esse dia. Recebi um correio eletrónico do Consulado de Zurique, convidando-me a estar presente nessa cidade, nesse dia. Convidaram-me para fazer uma pequena palestra sobre um livro meu que proporcionasse um diálogo sobre a literatura em Portugal. Fui assim, nessa data, inserido na comissão de que faziam parte o Embaixador português, o Cônsul da cidade e o Ministro Pedro Nuno Santos.

 

Alguns momentos inusitados experimentados ao longo da carreira? Bastantes, mas partilho um que aconteceu há alguns anos. Tinha editado “Retratos de Gente em Procissão” e, como professor em Espanha, nessa altura, fazia bastantes apresentações em escolas, ayuntamientos (câmaras municipais) e feiras do livro, especialmente em Placência e Badajoz, e um dia telefonaram-me para fazer uma apresentação em Olivença, onde existia a única Santa Casa da Misericórdia de Espanha e a única localidade onde fazem a Procissão do Senhor dos Passos, tal e qual como em Portugal. Aceitei e fui. Embora o livro tivesse na capa a Procissão do Senhor dos Passos de Portalegre, nada tinha que ver com a Igreja. Foi uma forma de retratar gente que, apesar do tempo ir passando, continuavam com os mesmos costumes e fases do calendário. A apresentação foi numa capela de azulejos portugueses e o apresentador era um padre que eu não conhecia. Foi nessa altura que me dei conta que me convidaram pela capa do livro, mas que o não tinham lido, pois o conteúdo nada tinha a ver com as tradições religiosas. Só me vinha à cabeça, quando todas aquelas beatas e beatos, e os padres presentes, lessem as partes mais hereges da obra. Acompanhava-me a minha mulher e o meu sogro. Quando terminou a palestra disse-lhes que não ficávamos para o jantar e que sairíamos logo que acabasse de assinar os livros. Assim aconteceu, jantámos pelo caminho, dando eu uma desculpa esfarrapada aos organizadores. Obviamente, nunca mais fui convidado a apresentar um livro em Olivença. Deveriam ter-me convidado sem ser pela capa do livro, mas era Semana Santa e a apresentação foi incluída no programa das festas.

 

Que opinião sobre o universo literário em Portugal e no Alentejo? Apesar da globalização, há poucos anos deu-se uma contração no universo editorial. Leya e Porto Editora compraram, monopolizaram, o mercado editorial e livreiro. Adquiriram todas as editoras de qualidade, muitas vezes sem ser para as rentabilizar, mas para as sentarem nos bancos de suplentes, como no futebol, para que lhes não fizessem concorrência. Essa disputa de espaço levou a uma explosão de pequenas editoras cada vez menos honestas, sem critérios de qualidade e abraçando a vontade de publicar tudo o que era escrito a troco de dinheiro, com banhos de queixas diárias nas redes sociais. Isso levou os autores de nome feito a criarem pequenas “cooperativas” onde apenas são editados os seus livros. Há, obviamente, uma diferença entre ter um livro publicado e ter um livro editado com uma editora licenciada. O Alentejo fugiu das edições e passou a publicações, feitas em gráficas, as mesmas que fazem os cartões-de-visita ou os cartazes das corridas de touros ou das romarias. Uma editora é outra coisa, tem os seus ilustradores, os seus paginadores, os seus corretores, o seu grupo de qualidade e seleção tanto para prosa como para poesia, e as suas gráficas, normalmente multinacionais, que só trabalham com editores legalizados e fazem os exemplares que os autores querem, seja um, cinco ou seis mil. São gigantescas fotocopiadoras, porque o offset que nos dizem existir já desapareceu na indústria livreira moderna.

 

E o acordo ortográfico? Julgo que escrevo “acordês”, pois se certos sítios onde escrevo como o “Lusitano de Zurique” não aceita textos com acordo ortográfico, na escola sou obrigado a usá-lo. A tontaria foi levada tão longe que mesmo nos países da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa) o Acordo só é usado em Portugal e em Timor-Leste, onde apenas as crianças falam o português, e só na escola.

 

O que está na “manga”? A curto prazo editar “A taberna de Avelino Camejo”, a médio prazo a continuação da reedição de todos os meus livros. Um ano um novo livro, no outro ano uma reedição. Também está na manga a edição das canções infantis com as letras ilustradas, transformando-se em livro infantil, contendo um CD na badana da contracapa. “O Bombeiro de Marvão” será o primeiro e só falta gravar. Depois, se me reformarem, ajudar a editora da Amelia, com o seu livro “Poemas da Ilha do Sândalo e outros versos” que será apresentado em Campo Maior, Porto, Albacete e Genebra. Também gostava de ajudar a Amelia na edição dos contos de Rui Cardoso Martins “Espelho de Água” e o de Urbano Tavares Rodrigues. Ainda tenho “O que foste lá fazer?” contos sobre Timor, e um livro da saudosa “Rabeca”, e tenho três entrevistas que fiz a Laura Alves, Raul Solnado e Simone de Oliveira.

 

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