Apesar de não a conhecer pessoalmente, conhecia a sua obra e queria entrar em contacto com ela. Foi um amigo comum que me facilitou o seu número de telefone.
«Que idade tem, menina?»
Foi a pergunta que me fez, de rompante, logo após eu dizer o meu nome e, sinteticamente, a razão do telefonema. Depois de ouvir a minha idade, comentou:
«Já tem idade para saber da vida…».
O comentário, inusitado, surpreendeu-me. Mas, no momento, não o privilegiei. Percebi que ela estava disposta a ouvir-me e continuei a falar. Acabámos por combinar um almoço na sua casa.
Apesar de ter vivido muitos anos em Lisboa, a dada altura, decidiu ir viver para uma aldeia, na serra algarvia.
«Eu e o M., o meu marido, estávamos fartos da cidade. Percebemos que nos triturava devagarinho. Ele era coleccionador e galerista. Conhecemos o mundo. Ao princípio, depois de cada viagem, voltávamos à cidade, empolgados. Poderosos, até. Ele, à galeria; eu, à minha pintura. Mas, gradualmente, essa rotina começou a deixar de fazer sentido…Descobrimos, por acaso, esta casa em ruínas. Estava à venda. O M. vendeu a galeria, compramo-la e reconstruímo-la. Para o nosso amor.»
A casa era incrível! Térrea, cheia de luz, com madeiras, pedras e azulejos da região. Mantinha também vários vestígios da ruína. Tinha somente um quarto. Enorme. Num dos extremos da casa encontrava-se um atelier imenso onde a L. pintava. A partir de uma sala de refeições, acedia-se à mezzanine, por uma escada. Esta, seguramente, ocupava dois terços da casa: era a biblioteca mais o espaço que acolhia algumas colecções privadas do M. Nas paredes conviviam quadros e quadros com a assinatura da L. Impressionava! A casa estava rodeada por um grande jardim, com muitas flores. Também árvores. Junto à piscina havia um banco de madeira. Com espaço para duas pessoas. Apenas.
Foi o primeiro de vários almoços que partilhámos. Tornaram-se o móbil para longas conversas sobre tudo aquilo que nos apetecia falar. Julgo que atenuavam a solidão que a L. sentia depois de ter perdido o M., para a doença, havia quatro ou cinco anos…
«Nós vivíamos um para o outro, menina. Perdê-lo deixou-me incompleta… Todos temos necessidade de encontrar alguém, semelhante a nós, e tão imperfeito quanto nós. E juntamo-nos porque aspiramos à felicidade, à esperança de alcançar uma vida perfeita e auto-suficiente. Eu tive a sorte de encontrar o M. E foi tudo tão bom enquanto durou… A altura em que o perdi coincidiu com o período em que ganhei a menopausa. E os incómodos que aporta. Pintar é cada vez mais difícil devido às artroses… Sem ele e sem a pintura, qual é o objectivo da minha vida?»
Quando a conversa ia para estas paragens eu ficava sem saber muito bem o que lhe dizer. Os lugares-comuns não tinham serventia. Para nenhuma das duas. Preferia o silêncio. Ela prosseguia:
«Trabalhei, ganhei dinheiro, fiz aquilo que gosto, e pude aju- dar outras pessoas. Amei e fui amada. Intensamente. Em ter- mos profissionais, realizei-me. Mas chegada ao que sou agora, quando as dores são a minha maior companhia, por que mo- tivo tenho de continuar a viver?»
Talvez a Fé a pudesse ajudar a encontrar uma resposta. Mas o seu agnosticismo não facilitava.
Para mais, L. havia-se libertado do círculo vicioso da vida quotidiana. Aquele que leva a que as pessoas ocupem grande parte do seu tempo de vida a trabalhar porque isso as leva a ganhar dinheiro e, por consequência, a adquirir aquilo que o dinheiro pode comprar. Para continuarem a viver, apegam-se aos momentos de felicidade que lhes são proporcionados es- pecialmente pelo dinheiro, pe- los bens materiais, pela família, pela saúde, pelos amigos… Mas este tipo de felicidade depende de elementos incertos. É volátil. Dura enquanto os respectivos desejos são satisfeitos. E a L. chegara a um ponto em que pa- recia já não ter desejos … Tudo o que havia construído ao longo da sua vida e que sustentou as suas felicidades estava a desmoronar-se, e ela agora, consciente que a felicidade que viveu havia ficado no passado, e era irrecuperável, não estava a conseguir voltar a construir coisa nenhuma…
Ainda lhe conheci um amigo, mais próximo. Nesse inter- valo, sentia-a mais animada. Recuperara algum brilho, até. Mas durou pouco tempo. Disse-me:
«Aquilo não tinha de ser, menina. Faltava-lhe muita alma!»
Num Natal soube que estava hospitalizada, após uma tentativa para pôr termo à vida. Quando voltou para casa, liguei-lhe.
«Não sei a razão pela qual es- tou viva, nem para quê. A vida, assim, é uma chatice…. Acredita que no hospital, puseram uma miúda, psicóloga, a falar comigo? Tive de inventar um jogo que fazia comigo própria: adivinhar, por antecipação, o que ela me ia dizer. Foi a forma que en- contrei para a suportar.»
Recentemente soube que, após mais um par de tentativas goradas, havia conseguido consumar o seu propósito. Sem medo nem angústia. Por vezes ela citava alguém, que não recordo:
«Sou um tempo que se esgota e só tenho esta existência para ser quem sou. Quando deixar de me conhecer, estou morta. Escolho ser o meu pró- prio tempo.»
À sua maneira. Desejo-a em paz, L.