Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: Filosofia do Vinho

02 de junho 2022 - 10:35
“No vinho há uma verdade” (Plínio, o Velho)

Dois anos passados de longa pandemia, sou confrontada com uma “estranha” necessidade de reclusão, que não deveria ser natural num admirável mundo novo pós-pandémico que emergiu das cinzas. E nesta breve fuga, acerto o passo com a natureza a partir do meu terraço, na consoladora companhia de um rico e generoso cálice alentejano, contemplo o doce sossego crepuscular que lentamente se abate sobre as casas do centro histórico, anunciadora da noite e dos seus contentamentos. E nesta vaga “contemplativa” sou assoberbada com uma dúvida existencial: será que no vinho existe uma filosofia, ou algo que se possa chamar de filosofia do vinho? Se existe uma filosofia inerente a  cada área do saber, o vinho não poderá aspirar a ser objecto de reflexão filosófica?

A filosofia ajuda-nos a ver as coisas de uma outra perspectiva. E, o vinho também não ajuda? A filosofia assenta numa procura de ideias com base numa discussão entre amigos, com o objectivo de chegar ao encontro da verdade. Mas, não é isso que faz o vinho? A propósito, defende Kierkegaard que o vinho pode traduzir a verdade. Para o comprovar, o filósofo apresenta-nos o banquete de Constatin, em que seis homens, num jantar memorável, dissertam sobre as mulheres e o amor. E o vinho instiga «discussões e não mera conversação» e a discussão deve ser norteada pela verdade; e «nenhuma verdade havia de se ouvir se não a que está “in vino” sendo o vinho a defesa da verdade e a verdade a defesa do vinho. Persuadir à verdade é, portanto um dos efeitos do vinho. O néctar sagrado, proporciona uma profunda reconsideração da relação entre vida e pensamento, vício e virtude, razão e paixão, medida e desmedida. O vinho deflagra um aroma que atiça os sentidos, e estes trabalham na retenção das recordações, que por sua vez estão indissociavelmente ligadas às emoções – o que é comum a todo o ser humano – e revelam o homem melancólico e saudoso.,  Sêneca ( 4 a.C – 65 d.C )o grande filosofo do Estoicismo, constatava a sua importância  quando dizia  “O vinho lava nossas inquietações, enxuga a alma até o fundo, e , entre outras coisas, garante a cura da tristeza”.  Para sobreviver à loucura dos tempos, nada melhor que o encontro reverencial com a amada de Dionísio, para consolar e fortalecer os espíritos; não existe melhor antídoto. Porque à volta de um copo de vinho, as amizades se fortalecem, as lágrimas se enxugam, as dores aliviam, as relações se edificam, capaz de converter uma refeição numa ocasião, tornando cada dia mais civilizado. Em suma, tornando a existência numa realidade possível. Como diria Descartes “Bebo vinho, logo existo”.

 

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

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