Texto Rodrigo Ramos
A história do colonialismo em África habituou-nos a trazer à discussão a memória envergonhada de vários países europeus; desses, só muito raramente a Alemanha é chamada à pedra. Mais atentos à presença portuguesa, francesa ou inglesa, ignoramos por vezes que a Alemanha estabeleceu de facto um império colonial, que se estendeu pelos Camarões, Togo, Quénia, Tanganica, hoje uma parte da Tanzânia, e Namíbia. De natureza tão brutal quanto outros de semelhante arquitectura, o seu impacto não tem sido verdadeiramente avaliado, em particular no que diz respeito àquela que podemos hoje considerar como a primeira campanha de extermínio do século XX, cometida pelo “kaiserreich”, o império alemão, na Namíbia, em 1904, a qual – nas palavras do narrador de “Vidas Seguintes”, deixou um lixo de caveiras e ossos espalhado por toda a parte e os terrenos ensopados em sangue.
“Vidas Seguintes”, de Abdulrazak Gurnah, vencedor do prémio Nobel da Literatura em 2021, traz à luz da nossa era o genocídio colonial do início do século XX, perpetrado inclusivamente por mãos de africanos que, não sendo cidadãos de nações que não existiam independentemente, nem membros de um império que os desprezava, se tornaram na carne para o canhão que era a “Schultztruppe”, um corpo militar de nativos treinados pelo opressor colonial para massacrar e chacinar a população.
É Khalifa quem primeiro desvia a narrativa da guerra para a posicionar numa pequena vila costeira, nunca nomeada, que de algum modo conseguira passar ao largo dos intermináveis conflitos e atrocidades. A acção foca-se então no dia-a-dia corriqueiro de modestos cidadãos, que conduzem as suas vidas e os seus pequenos negócios com recato. É nesta vila que Khalifa toma Asha como esposa e conhecemos a história do seu amigo Ilyas, que fugira de casa ainda criança e fora raptado por um produtor de café alemão, que o adoptara, lhe ensinara a língua e os costumes alemães e se empenhara em que Ilyas tivesse uma boa educação e um futuro cómodo. Naturalmente, Ilyas cresce com uma disposição afável para com os colonizadores alemães e é um apoiante diligente das suas acções. Em adulto, instigado por Khalifa, decide regressar à vila para procurar uma irmã mais nova, Afiya, que fora confiada à sorte de uns vizinhos empenhados em fazer da criança uma Cinderela para toda a obra. Ilyas salva a irmã da casa dos horrores onde havia sido deixada e os dois vivem um período de paz e tranquilidade, até que a ameaça da Primeira Guerra Mundial desperta em si uma ânsia adormecida que o leva a alistar-se na “Schultztruppe”, para combater pelo “kaiserreich”. Demasiado nova, Afiya vê-se então regressada à família adoptiva, onde acaba espancada e só Khalifa a salva de uma morte certa. Sem mais família que o irmão ausente, cresce acolhida por Khalifa e Asha como se fora filha do jovem casal.
A história de Hamza é irmanada da de Ilyas. Vendido pelo pai como pagamento de uma dívida, escapa-se do seu carcereiro e voluntaria-se para a “Schultztruppe”, trocando uma existência terrível por outra de similar valia. Hamza é o último protagonista e traz consigo, porventura, a mais emocionante e perturbadora história do romance. É através do seu olhar que o autor põe a nu a relação entre o opressor alemão e os oprimidos africanos. Por ser um dos poucos nativos que sabe ler, torna-se assistente pessoal do Oberleutenant, o mais alto oficial do exército alemão, que insiste em lhe ensinar a língua alemã e o põe a ler Schiller, ao mesmo tempo que aterroriza as populações locais com os seus “askari”, vocábulo de origem persa que designa “soldados”. Hamza consegue libertar-se do exército e da relação claustrofóbica com o seu Oberleutenant quando é ferido com gravidade por um outro oficial alemão e fica ao cuidado de uma missão cristã, até recuperar da lesão. Quando se acha apto, Hamza foge da casa missionária, regressa à sua vila e encontra trabalho no armazém onde trabalha Khalifa. A lesão, que não sarara completamente, é uma recordação das angústias e dos tormentos por que passara às mãos dos alemães. Recupera, por fim, algum ânimo e descobre um pouco de paz na compaixão rústica, mas compassiva, de Khalifa… nela, e nos olhos de Afiya, por quem se apaixona.
A compaixão de Khalifa e sobretudo o amor de Hamza por Afiya assinalam o triunfo dos oprimidos, perante a ocupação cruel do imponente exército alemão, nos limiares da Primeira Grande Guerra. O triunfo não é alcançado por um levantamento de revolta para iniciar uma guerra que os nativos nunca poderiam vencer, mas no levantamento de uma voz que se julgara muda, uma voz que durante décadas fora silenciada e rasurada dos arquivos coloniais. A perspectiva europeia da guerra sempre considerou as batalhas épicas como marcos singulares da História. Gurnah mostra-nos o resultado dos conflitos quando observados através dos olhares das vítimas, que ainda assim resistem; que, apesar das abominações, se ocupam das trivialidades da vida; que, não obstante a dor, amam; que, em face da morte, vivem. “Vidas Seguintes” é um romance que congrega aqueles que supúnhamos atirados para vazio do esquecimento, mas cuja memória se recusa a deixar de existir.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia