Diário do Alentejo

Crónica: "Submissão"

12 de maio 2022 - 11:40

Texto Rodrigo Ramos

 

Sugerem as eleições ocorridas em França no domingo passado que traga a público, como recomendação literária desta semana, um romance controverso, que causou em França inflamados protestos e que levou o então primeiro-ministro francês Manuel Valls a declarar, no limiar da publicação da obra, que França não era Michel Houellebecq, não era intolerância, ódio, medo. A acusação que Valls fazia cair sobre Houellebecq era na verdade um espelho onde se reflectia a si mesmo: era o ex-primeiro-ministro – e não o romancista – quem parecia ter medo. De quê? De uma obra de ficção? De um exercício de realidade alternativa? Ou de um possível ensombramento futuro?

 

Mas de que trata o romance? “Submissão” decorre após o fim do mandato presencial de François Hollande e propõe um contexto político em que o partido da Irmandade Muçulmana, em crescente popularidade, concorre à segunda volta das eleições presidenciais contra a Frente Nacional de Marine Le Pen. Para impedir que a extrema-direita suba ao poder, os socialistas optam pelo diabo que menos conhecem e formam uma coligação com a candidatura islâmica. Mohammed Ben Abbes, presidente do partido, acaba por vencer a corrida ao Eliseu. O título do romance não é casual. Etimologicamente, a palavra “Islão” provém do árabe Islam, que por sua vez resulta de uma evolução linguística de “aslama”, que significa precisamente “submissão”. Talvez por isso Manuel Valls imaginasse um romance islamofóbico e, em antecipação a possíveis fatwas prometidas a Michel Houellebecq, tenha tratado de o denunciar. Quando Jean-Paul Sartre fora detido, em resultado da sua participação nos protestos de Maio de 1968, o presidente francês Charles de Gaulle apressou-se a emitir uma ordem de libertação, acompanhada de uma veemente repreensão – “não se prende Voltaire”. À luz da evocação deste episódio, não é possível deixar de questionar o quanto parece ter mudado a concepção que a sociedade civil tem acerca dos filósofos, escritores, artistas e intelectuais, bem como – e talvez, sobretudo – acerca do próprio conceito de liberdade de expressão.

 

Ao contrário do que commumente se supõe, é sempre a natureza que segue a arte. Se não, vejamos: no mesmo dia da publicação do romance deu-se o ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo. Para adicionar morbidez à curiosidade, a última edição publicada antes do ataque trazia na capa precisamente Michel Houellebecq, satirizado, pois claro, como era da praxe. Nesse ataque, morreram 8 funcionários da revista. Um deles, um amigo chegado do romancista francês.

 

“Submissão” tem algo de perturbador e decididamente provocatório. Não obstante, não poderemos acusar Houellebecq de conduzir a narrativa pelo caminho mais óbvio ou mais expectável. Neste romance, o partido muçulmano que vence as eleições não é extremista, antes moderado, um contraste com a desmesurada e hiperbólica Frente Nacional. A sociedade francesa não é tomada a ferro e fogo pelo islamismo, não se vislumbra a mais pequena sugestão da criação de um califado. De facto, a haver uma crítica, não parece ter como alvo os muçulmanos nem o islão, mas a sociedade europeia, moderna e livre, como se deseja, mas moralmente corrupta, desde o seu coração político, atravessando as suas instituições sociais e culminando nas vidas nihilistas, cínicas e, não raras vezes, racistas dos cidadãos europeus. Destes, o protótipo-mor, corrupto intelectualmente, é o próprio protagonista, François, um professor universitário de 44 anos que, apesar de ocupar um cargo confortável na Sorbonne, vive uma vida vazia. Alcoólico e fumador, François não se interessa por política; é excessivamente céptico quanto ao amor, pelo que se mostra incapaz de desenvolver uma relação romântica profunda com Miriam, a sua namorada israelita. Divide essa relação com vários envolvimentos sexuais com estudantes universitárias. François corporiza tudo aquilo que Houellebecq considera errado na cultura europeia e que se pode definir em meia-dúzia de palavras: falta carácter espiritual do indivíduo ocidental. No fundo, tudo que aquilo que, sem o pronunciar abertamente, Manuel Valls apontara no próprio Houellebecq. O romance coloca o escritor no centro da sua própria crítica. É, pois, esta sociedade europeia, composta por esta geração de sujeitos, que o moderado governo da Irmandade Muçulmana pretende dotar de uma força espiritual e íntegra. No fundo, devolver à Europa os valores morais que perdera.

 

Morais, sim, mas não necessariamente os valores judaico-cristãos fundadores da civilização ocidental. Lentamente, seguindo um programa calculista, implanta-se em França, no coração da Europa, um Estado de Sharia, que é adoptado sem grandes protestos. A criminalidade desce consideravelmente, o déficit decresce com a redução da despesa na educação, uma vez que o ensino obrigatório recua até aos 12 anos; o desemprego reduz-se drasticamente, pelo facto das mulheres, confinadas ao papel familiar, ficarem impedidas de ter um emprego; a sublinhar todas as alterações sociais, é aconselhado o uso do véu islâmico; a poligamia é prática aceite - um professor universitário, colega de François, casa com uma jovem de 15 anos e essa circunstância acaba por provocar no protagonista uma inveja latente. Os judeus, mais fiéis às suas convicções religiosas e, por isso, menos permeáveis a outras homilias, são convidados a preservar a sua liberdade doutrinária – em Israel. Por efeitos de contágio, outros países europeus acham-se governados por partidos muçulmanos e com a entrada de Marrocos, da Tunísia e da Turquia na União Europeia, França volta a ocupar uma posição privilegiada de poder mundial, numa espécie de regresso a um passado glorioso de que gozara no século das luzes. François, receoso de perder o seu lugar na renomeada Universidade Islâmica de Paris-Sorbonne, descobre com alívio que não só o poderá manter, como usufruirá de um significativo aumento de salário… com uma singela condição – a conversão ao Islão.

 

“Submissão” é uma distopia profética de um futuro a haver. Neste ensaio ficcional, não é a sociedade islâmica que toma o poder na Europa, é a Europa que se entrega. Houellebecq parece sugerir que a sociedade francesa – e com ela as sociedades europeias – pode vir a colher o que agora semeia por inércia. Jornalistas, professores, intelectuais e políticos deixaram de ter convicções profundas em que acreditar e quando isso sucede, quando acorrentamos os dias numa torrente de momentos insignificantes, deixamos de ter algo por que lutar. É nesse momento, parece sugerir Houellebecq, que podemos ver o Estado ser tomado por quem acredita em algo maior do que nós. O que será então da civilização ocidental? Como responde François a Miriam, em determinado momento, “não há um Israel para mim”.

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