Diário do Alentejo

Rita Cortês: “O Alentejo entranha-se e nunca mais nos abandona”

04 de maio 2022 - 17:00

Rita Cortês de Matos nasceu em Lisboa no século passado. Diz que rabisca e desenha quase todos os dias desde que se lembra de si. Cresceu no meio da arqueologia e, ainda na adolescência, especializou-se em desenho arqueológico. Contrariamente ao que seria esperado, o curso de História não foi a sua primeira escolha, licenciando-se em Educação Física e Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana, e só depois em História, na Faculdade de Letras de Lisboa, onde também fez o mestrado em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa.

 

O nascimento dos três filhos afastou-a da rotina do desenho diário por vários anos. A partir de 2011, com os descendentes mais crescidos, recomeçou a aproximação ao desenho, iniciando a sua colaboração no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, cidade para onde se mudou em 2003. Nesse processo de reaproximação à arte do traço, coube também a frequência de vários cursos de ilustração, nomeadamente de ilustração científica, no Museu de História Natural de Lisboa, com o Professor Pedro Salgado. Uma aprendizagem que lhe valeu, em 2018, o 1º Prémio Internacional de Ilustração Científica «llustraciencia6».

 

Do seu vasto vínculo ao universo artístico, destacam-me: os três livros infantis que ilustrou e escreveu; as ilustrações infantojuvenis que desenvolveu para quatro Centros de Interpretação, em Santo Antão, Cabo Verde; o projeto que integrou, juntamente com um conjunto de artistas espanholas, sobre mulheres cientistas para a Casio Espanha; as diversas ilustrações para anúncios, garrafas de vinho, entre outros, que concebeu; a ilustração científica e naturalista que trabalhou num projeto sobre um jogo do lince, na Amendoeira da Serra; as duas placas informativas que desenhou para o Jardim Botânico de Lisboa; uma prancha sobre pradarias marinhas que ilustrou, num projeto que juntou cientistas e ilustradores sobre o Mar, para a Universidade de Vigo; as ilustrações criadas para os livros de História da Raiz Editora, na área da reconstrução histórica; as ilustrações presentes em duas exposições, patentes atualmente no Museu de História Natural de Lisboa – Illustrare e Grupo do Risco. Fotografia e Desenho em Cadernos.

 

Rita Cortês é membro dos Urban Sketchers Portugal, desde 2015, membro fundador dos Urban Sketchers Beja, membro do Grupo do Risco e da GNSI (Guild of Natural Science Illustrators), desde 2018. E atualmente é ilustradora freelancer.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Como foi descoberta a vocação para a arte do traço?

Aconteceu, talvez do facto de ter crescido rodeada de revistas e livros de Banda Desenhada, que o meu pai comprava, e de quadros e esboços do meu tio-avô, o pintor Guilherme Filipe, que existiam nas paredes das casas da família.

 

Quando é que ao desenho se juntam as palavras, para fazerem nascer o Passaroco?

É um sonho antigo e que começou pela palavra. As histórias já andariam por aí na cabeça, antes mesmo dos desenhos, e a saga do passaroco começou quando os meus filhos eram pequenos e eu tinha de os distrair para os fazer comer, andar a pé ou adormecerem. As histórias foram surgindo com a ajuda deles. Eram como que pequenos folhetins que depois se tornaram numa compilação que deu origem aos livros do Passaroco.

 

Onde vais beber a inspiração para fazer arte?

Vou buscar a minha inspiração a tudo o que me rodeia. Exposições de outros artistas, um bom filme, uma música, uma paisagem, uma fotografia.

 

E que papel desempenha o Alentejo nesse processo criativo?

O Alentejo é um caso sério, entranha-se e nunca mais nos abandona. Considero-me uma lisboeta-alentejana. Por isso, o que faço é sem dúvida influenciado por esta minha parte alentejana.

 

Dos vários projetos desenvolvidos, algum mais marcante?

Pelo impacto causado nas outras pessoas, destaco o trabalho feito para os Centros de Interpretação de Santo Antão, um Projeto da ADPM (Associação de Defesa do Património de Mértola). As reações das crianças e adultos, de uma forma geral, superaram as minhas espectativas.

 

Que opinião sobre o estado das tuas artes em Portugal e no Alentejo?

Esta resposta ocuparia o jornal todo. Vou apenas referir o que penso ser básico. A arte em geral, a sua apreciação e partilha deveria ser desenvolvida nas escolas. As crianças são verdadeiras esponjas para o mundo que os rodeia. Infelizmente, os nossos programadores acham que o desenho, a pintura, a música, a escrita e o teatro, só para dar alguns exemplos, são disciplinas menores. Esta noção prevalece há muitas décadas no nosso país. Quais são os pais que deixam os filhos seguirem Artes sem se arrepiarem ou tentarem convencer que nas ciências ou humanidades é que eles ‘serão alguém’? Isto, ampliado para a sociedade, dá-nos um bom panorama do que um artista, em Portugal tem de enfrentar. ‘Faz-me aí um boneco’ é uma frase muito ouvida por todos os artistas que têm de pagar as suas contas e comer, como qualquer outra pessoa, mas cuja formação e trabalho são normalmente pouco valorizados.

 

Que sugestão para os que ambicionam uma carreira no universo artístico?

Como qualquer outra atividade, uma carreira no universo artístico implica muito trabalho, dedicação, persistência e gostar do que se faz. Toda a gente sabe desenhar. Começamos todos da mesma forma, com uns rabiscos que vão evoluindo. O difícil, a partir de determinada idade, é continuar. Os desenhos dos outros são mais giros ou não conseguimos passar para o papel as ideias que temos na cabeça e começa a fase da vergonha e da frustração. Quem consegue ultrapassar esta fase ou quem for ajudado a ultrapassá-la, por um bom professor, vai desenhar a vida toda. A maioria dos adultos ficou nesta fase, não continuou. A minha sugestão é que arranjem um caderno de desenhos, o chamado Diário Gráfico, e façam experiências, vão para a rua desenhar, desafiem amigos a irem convosco, juntem-se a um grupo de Urban Sketchers, inscrevam-se em workshops. Observem e desenhem sem parar, pois, quanto mais se desenha, melhor se desenha. O nosso cérebro é um músculo que precisa de ser exercitado para saber observar e transmitir ordens às mãos, por exemplo.

 

Como têm sido vividos estes tempos insólitos?

Neste período continuei a trabalhar. Tive sempre encomendas, felizmente. A par disso, fiz um ‘Diário de Pandemia’ – os meus 53 dias de confinamento de 2020. Este Diário é uma sequência diária de desenhos que retratam o momento que se estava a viver, juntamente com recortes de jornais, imagens da televisão e da net, cartoons de vários artistas, etc. É o registo de um momento único, para quem vier a seguir ter uma ideia do que se passou e das esperanças que se teve num mundo melhor. Quanto ao momento atual, de guerra, entristece-me demasiado para conseguir fazer arte inspirando-me nele.

 

Que sonhos e ambições artísticas moram em Rita Cortês?

Desenhar cada vez melhor, continuar a viajar desenhando e voltar a ilustrar livros infantis.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

Neste momento estou a trabalhar com a ADPM em ilustrações para um novo Centro de Interpretação, desta vez no Ilhéu das Rolas, em São Tomé. Também dedico sempre uma parte do meu tempo a trabalhar em peças de portefólio que mostrem o que sou capaz de fazer e me permitam não perder ‘a mão’, nomeadamente na área da ilustração científica.

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