Diário do Alentejo

Crónica: "A Morte de Ivan Ilitch"

27 de abril 2022 - 14:50

Texto Rodrigo Ramos

 

Ao contrário do que o título promete, este não é um ensaio sobre a morte. Publicada pela primeira vez em 1886, após a conversão religiosa de Lev Tolstoi, esta novela de cerca de 90 páginas é, na verdade, sobre a condição humana. Numa teimosa deslealdade para com determinados críticos literários deste jornal, o primeiro capítulo dá de pronto para o velório de Ivan Ilitch, magistrado do Supremo Tribunal de Justiça. O leitor é convidado a entrar na residência da família, onde repousa o corpo do juiz, circundado por uma esposa superficial, desapegada e por uns colegas hipócritas, muito interessados em saber a quem cabia a ventura de herdar o lugar do Supremo, então deixado vago, embora ainda não inteiramente arrefecido. Este primeiro capítulo não constitui apenas uma crítica a uma sociedade de classe média despojada de valores humanistas, mas também aos preceitos que conduziram Ilitch a uma vida de sucesso profissional, sustentada, em contraponto, na renúncia de comportamentos honestos e empáticos par com o seu círculo profissional e na incapacidade de cultivar uma relação afectiva inquebrável, uma união harmoniosa e interdependente, no seio familiar. Temos assim que a frivolidade da esposa é, também, uma consequência das acções de um homem demasiado ávido por sucesso.

 

A narração, que começa solta e galopante nos primeiros capítulos, para depois afunilar numa lentidão inquietante e angustiada, que se fecha sobre o protagonista, até se suspender por completo no instante zero da sua morte, explica-se em duas linhas: Ivan Ilitch sofre de uma doença prolongada desconhecida, provocada por uma lesão que não sarara completamente. Como ocorre por diversas vezes em situações semelhantes, morre. Uma vez mais – insista-se! –, esta novela não trata da morte. Ivan Ilitch é um homem comum, tomado por pensamentos, desejos e ambições gémeas das que podemos encontrar no mais íntimo de nós. Ao traçar as linhas deste homem trivial, Lev Tolstoi descreve-nos a todos; quando testemunhamos o modo como o magistrado conduziu a sua vida, como abdicou dos princípios mais elementares de moralidade, como as ambições o conduziram a uma crise existencial sufocante e claustrofóbica, não deixamos de nos interrogar acerca do quanto as nossas aspirações nos estão a consumir, do quanto somos também Ilitch e, em igual medida, de que modo o materialismo e as relações hipócritas da sociedade russa do século XIX se estendem aos nossos dias, arruinam a sociedade e corroem as nossas vidas.

 

Ivan Ilitch é a nossa bússola moral. O imperativo da (sua) morte sublinha a importância de fazermos corresponder o nosso comportamento a códigos morais elevados, capazes de quebrar o isolamento a que as sociedades modernas nos parecem confinar. A morte de Ivan Ilitch é uma homilia acerca de como o conforto da humanidade não depende de pretensões materialistas nem de relações artificiais, apuradas na mesquinhez para atingir determinados fins, mas antes reside na empatia e na solidariedade. Só o criado de Ilitch, Gerasim, o único que nunca o abandona, vive de acordo com estes imperativos, pelo que não é de estranhar que seja a única personagem consciente da inevitabilidade da morte, que encara com naturalidade. Esta serena certeza não o desespera, antes o liberta de qualquer ansiedade.

 

A morte de Ivan Ilitch é uma obra-prima de Tolstoi, um espelho interposto entre a vida e a morte, onde nos achamos reflectidos, na plenitude do que somos.

 

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