Diário do Alentejo

Célia Macedo: “Faço cerâmica inspirada pela tradição"

22 de abril 2022 - 18:00

Sou uma criativa, apaixonada pela cerâmica, que pertence àquele grupo de pessoas que mudou de caminho perto dos 40.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Assim se introduz Célia Macedo, uma mulher que passou 12 anos fora de Portugal, uma mulher que nessa dúzia de anos foi arquiteta, investigadora, professora universitária, acompanhou os Architectures Sans Frontières, em pelo menos três continentes, e dirigiu um curso de Mestrado em Urban Design, no Reino Unido.

Hoje, com 41 anos, reinventei-me como profissional no setor do artesanato português. Sou ceramista, artesã certificada, e com muito orgulho! Sinto que carrego nas mãos, e no coração, a herança de um ofício com muitas centenas de anos de existência em Portugal e no mundo! Sou assim uma espécie de ativista da felicidade pelo sonho, que é como quem diz, acredito piamente que devemos acreditar e seguir os nossos sonhos, mesmo que para isso seja preciso mover montanhas! Sou aquilo a que se chama uma "One woman show", mas a trabalhar arduamente para mudar isso!

 

Como se define a Célia Macedo enquanto artista?

A formação em arquitetura deixou-me a herança de uma forma de criação metódica e regrada, enfatizada pelos muitos anos que passei como investigadora na academia. Utilizo a inspiração de forma muito racional, muito pensada. Talvez não se encaixe na imagem típica de artista que povoa as nossas mentes, mas o meu processo criativo bebe da minha “vida passada”, que, acredito, enriquece as peças que saem da minha roda de oleiro.

 

Quando e como o gosto pela arte começou a ganhar protagonismo?

A cerâmica foi a minha plataforma de regresso a Portugal. Em Inglaterra era apenas um hobby, mas depressa se manifestou numa paixão difícil de silenciar. Depois de 12 anos emigrada, com uma carreira sólida na academia, dei o passo para tornar essa paixão numa forma de vida.

Faltava-me uma base de cerâmica tradicional portuguesa e, por isso, arrumei malas e bagagens, ou melhor, muitas caixas e uma gata, e rumei a São Pedro do Corval, no Alentejo, o coração da olaria em Portugal. Chegada, abordei um mestre oleiro, disse-lhe que queria aprender a sua arte e que tinha tempo para o fazer. O Mestre Joaquim Tavares acolheu-me por uns bons meses e ensinou-me a olaria como nunca a poderia ter aprendido em mais sítio nenhum. Graças a ele entendo, não só a técnica da olaria tradicional desta região, mas também a importância de lhe dar continuidade, de a reinventar à luz do presente.

 

Dos trabalhos realizados, algum a destacar?

A meio de 2021 recebi um telefonema de uma senhora que, não tendo redes sociais, conseguiu chegar a mim, por via de outros contactos que fez para esse efeito. Falámos ao telefone. De uma simpatia tamanha, a Dona Maria da Conceição explicou-me que o cálice que usavam na eucaristia, na sua paróquia, em Landim, Vila Nova de Famalicão, se tinha quebrado. Não era um cálice qualquer, e aí residia o problema. O cálice, explicou-me, veio diretamente da Terra Santa, e era muito importante para a comunidade. Disse que, no momento em que viu a reportagem que passou no «Outras Histórias», na RTP1, sabia que eu era a pessoa que podia ajudar a resolver este problema, e que não descansou enquanto não chegou até mim. Pediu-me para reproduzir o copo que outrora ocupara o palco da Eucaristia. Não ia ficar igual, ambas sabíamos, mas seria feito com a alma e o coração que o trabalho pedia. Passados uns meses, recebi um envelope em casa. Nem queria acreditar quando abri. Continha várias fotografias do cálice no altar e uma linda carta escrita à mão, que me deixou muito emocionada. Posteriormente, ainda consegui encontrar os vídeos online onde se pode ver o cálice a ser usado na Eucaristia. Já recebi muitas mensagens de clientes satisfeitos que compraram as minhas peças, mas este testemunho, vindo de alguém que fez questão de tirar fotografias, revelá-las, escrever uma carta, levar aos correios, foi um gesto de incomparável beleza e generosidade. Foi uma honra poder fazer aquele trabalho.

 

Que papel desempenha o Alentejo nas criações artísticas de Célia Macedo?

Faço cerâmica inspirada pela tradição, mas pensada e concebida, para a vida moderna. E faço-a enraizada num Alentejo profundo, que não trocaria por nada, mesmo sendo ribatejana.

A inspiração para as minhas peças parte muito do meu contexto atual, mas também bebe das raízes da minha formação inicial na cerâmica. Procuro trazer para o meu trabalho a riqueza de centenas de anos de tradição da olaria do Alentejo, mas também as linhas minimalistas da cerâmica do Norte da Europa, onde coloquei pela primeira vez as mãos no barro.

 

Dos trabalhos já desenvolvidos, algum a destacar?

Gostaria de destacar o lugar entre os cinco finalistas do Prémio Nacional de Artesanato 2021, promovido pelo IEFP (Instituto do Emprego e da Formação Profissional), na categoria "Empreendedorismo e Novos Talentos". Ainda não se sabe quem é o vencedor, mas estar entre os finalistas já me deixa muitíssimo feliz. Feliz por mim, claro, mas sobretudo pela cerâmica portuguesa. Nos novos talentos, a minha nomeação é a única ligada à cerâmica. E não é uma cerâmica qualquer, é a cerâmica funcional de barro vermelho, do barro português, do Alentejo profundo, a mesma que bebe da tradição e a traz para as mesas dos nossos dias. É um trabalho muito específico do seu contexto, o mesmo onde se afirma constantemente que a olaria está em decadência, a desaparecer, e a dar o seu lugar às cerâmicas "modernas" do norte do país. Pois bem, para mim, ser considerada finalista, mostra exatamente o contrário. Independentemente do resultado, mostra que a essência da tradição cerâmica desta zona do país está bem viva, e que perdurará com as gerações vindouras.

 

Como são identificados os motivos alvo de criação artística?

As temáticas que constam na minha cerâmica são um misto de inspiração do contexto que me rodeia, e uma procura da conciliação perfeita da estética/forma e função das peças.

Por exemplo, tenho quatro linhas principais, com graus de complexidade distintos, pensando na adaptação a diferentes ambientes, a espaços que chamam a mais ou menos detalhe de ornamentação. A linha mais decorativa, ainda que perfeitamente utilitária, é a “Alentejo”, e retrata uma paisagem alentejana. A linha “Horizonte” recria a silhueta da planície alentejana, de forma mais simplificada, sobre um fundo branco. Depois tenho uma linha mais minimalista, a “Pincelada”, que joga com contrastes entre branco e a cor rica do barro vermelho. No limite da simplicidade, aparece a “Naked”, onde se celebra a estética natural deste material.

 

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Qual a recetividade do público à arte de Célia Macedo? Até agora, e espero que assim se mantenha, a recetividade ao meu trabalho tem sido muito positiva e encorajadora. Por exemplo, tenho vários clientes que voltam muitas vezes para adquirir mais das minhas peças, e isso é sempre um bom sinal.

 

Onde e como se consegue aceder às criações de Célia Macedo?

Por enquanto é, sobretudo, através das redes socias. No Instagram estou como @celiamacedo_ceramics, e tenho uma loja online na Etsy, com o nome “CeliaMacedoDesign”.

Em breve terei um atelier com condições para receber pessoas e visitas.

 

Qual a opinião sobre o estado da arte de Célia Macedo em Portugal e no Alentejo?

Por cá, ainda se pensa que é difícil viver da cerâmica artesanal. Muitos ainda atribuem uma sentença de morte ao setor, mesmo que esta ideia seja infundada. O discurso quase fatalista, alimentado tantas vezes pela comunicação social, não corresponde necessariamente à verdade, e uma abordagem focada nas vulnerabilidades não contribui para que futuras gerações se interessem por, e queiram fazer do artesanato a sua atividade profissional. Por experiência, acredito que é possível viver de ofícios tão antigos e bonitos, como a cerâmica artesanal, a marcenaria, a cutelaria, a tecelagem, entre outros. É verdade que a comunidade de artesãos precisa de mais gente, não por estar em decadência, mas sim porque oferece potencial para uma boa vida.

 

Alguma situação mais inusitada experimentada ao longo do percurso artístico?

Recebi um postal de Boas Festas do Senhor Presidente da República. Não estava nada à espera, e guardo-o numa moldura, no estúdio. Algures no Palácio de Belém está uma das minhas garrafas de azeite “Alentejo” e um azeitoneiro “Horizonte”. Gosto de os imaginar à mesa.

 

Como foi vivido este período de “stand by” no mundo?

A minha marca nasceu no período covid. Tinha acabado de montar o meu espaço de trabalho, a minha roda e forno tinham acabado de ser entregues e… “pimba”, o primeiro confinamento nacional entrou!

Depois de uma primeira reação de receio pelo impacto negativo que poderia ter nos meus planos, aproveitei o tempo para aprimorar a minha técnica e desenvolver uma coleção. Para além disso, e uma vez que praticamente toda a gente estava em casa, fiz uso das redes sociais para “estar junto” das pessoas, criar uma comunidade de pessoas que, mesmo estando longe, estaria perto de mim e dos meus produtos. Correu tudo bem e, rapidamente, ganhei muitos clientes, tanto particulares como lojas que se prepararam para a abertura pós-covid, e abriram já com peças minhas. Hoje em dia, não imagino a minha vida sem as redes sociais.

 

Que sonhos e ambições artísticas moram em Célia Macedo?

A minha ambição principal é ter uma marca com autoridade e destaque no setor da cerâmica artesanal portuguesa. Estou a trabalhar arduamente para esse fim.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

A curto e médio prazo, quero crescer a minha escala de produção. Isso passa por mudar-me para um espaço maior, adquirir mais equipamento e aumentar a minha equipa de trabalho. Para além disso, e já a longo prazo, tenho planos para aliar uma componente pedagógica ao meu projeto, ou seja, formar pessoas que queiram aprender a trabalhar com o barro.

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