Diário do Alentejo

Gravar a música portuguesa é perpetuar a essência das pessoas

06 de abril 2022 - 10:40

Cresceu na influência da música tradicional portuguesa com os melhores, mas durante muito tempo focou-se na música eletrónica, gravando sons que usava para a compor. Ainda ensaia experiências nesse sentido, mas o principal foco de Tiago Pereira, mentor de “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, está em documentar o processo de passagem da tradição para a era digital, recolhendo e divulgando manifestações musicais e muitos saberes ancestrais.

O realizador, documentarista e diretor artístico destaca o lado social do projeto que, entretanto, já criou outros paralelos. Recentemente também lançou uma revista que, no próximo número, presta homenagem a um cantador de Aljustrel.

 

Texto Júlia Serrão

 

De férias na Geórgia com a mulher, Tiago Pereira gravou grupos de cantadores amadores, à semelhança do que faz por cá. “Ali podemos ter representadas todas as polifonias da Europa, porque a deles é muito complexa. Não fazia sentido não gravar. Além disso, gostamos da ideia de pontes.”

 

O realizador, documentarista, mentor e diretor do projeto “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” (Mpagdp) fala da experiência semelhante que se materializou em “Os cantadores de Paris”, em 2017, sobre um grupo de cante alentejano fundado na capital francesa, com jovens de diferentes nacionalidades: “Inclusive, trouxemos os primeiros elementos do grupo para Serpa, para se envolverem e cantarem com os grupos que estavam lá.” O documentário é rodado nas duas cidades, com concertos improvisados em locais emblemáticos – como acontece nos trabalhos do realizador, e é a sua assinatura. Agora, a ideia é perceber como podem “ter parcerias” da Geórgia, “para fazer um intercâmbio de polifonias, que pode ser com o país, a Sardenha e Portugal: não só com o Alentejo, mas também com os cantos polifónicos do Minho e do Lafões”.

 

O projeto promove e divulga a música portuguesa, com gravações que “dão a conhecer as pessoas que cantam para si próprias no sentido primordial de cantar para si mesma, e grupos menos conhecidos”. Também regista “a música urbana que começa a surgir”, pois o objetivo “também é descobrir o que é menos conhecido para levar a todo o lado”, acrescenta Tiago Pereira, defendendo que a música tradicional está a desaparecer por “não ter uma sociedade à volta” que a sustente.

 

SINALIZAR PESSOAS E NÃO MÚSICA

A integração de uma assistente social na equipa “permitiu que o projeto ganhasse outros aspetos de um lado social que não era tão claro, embora já existisse”, diz, referindo- se a Cristina Enes Garcia, a mulher. Explica que isso faz com que o “regresso aos sítios seja importante, no sentido de continuar a reconhecer positivamente as pessoas”, valorizando-as. “Nós não sinalizamos música, sinalizamos pessoas que têm uma posição frágil na sociedade, a maioria das vezes: porque sofrem de idadismo ou isolamento, vivem ou fazem coisas que são ignoradas pelo resto da sociedade.” Sendo que, a maior parte “tem uma postura relativamente ao que sabe – e adquiriu através de um tempo em que essas coisas faziam sentido na comunidade –, de que não conta para nada, já não interessa”.

 

O projeto, assente na defesa da memória coletiva oral, documenta “esse processo de passagem da tradição que existia para esta era digital”. Quer chegar à maior parte das pessoas, dizendo que todas são importantes e têm uma história para contar. “Mas o verdeiro valor é aquele momento em que estamos com elas”, sublinha Tiago Pereira, adiantando que a mensagem não é muito fácil de passar a uma câmara, que lhes paga para mapear o que existe para ser documentado. “O que tem de ser valorizado é este processo, e não o vídeo porque tem melhor som ou imagem: o facto de estar com, de saber estar com, o nunca interrompermos as pessoas, de as ouvirmos, de respeitarmos os silêncios, de vermos e respeitarmos o momento em que estão perdidas, em que aceitamos que elas se encontrem, de as valorizar sempre positivamente incentivando- as a contarem as suas histórias. É o reforço positivo.”

 

O LADO SOCIAL DA MÚSICA PORTUGUESA

Vai além da música tradicional, registando pessoas a ler romances, a dizer poemas e benzeduras, a falar dos seus ofícios, e narrativas de vida. As gravações são colocadas não só na plataforma Vimeo como no Facebook, tornando- as mais acessíveis, pois há sempre alguém que vê e comenta que “a pessoa esteve muito bem”, o que funciona como “reforço positivo”. “Às vezes, até reforça cognitivamente! Porque, a seguir, vêm dizer que já se lembraram de mais coisas, e se nós podemos voltar lá.”

 

Resultado de um protocolo da Associação “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” com a “Associação Alentejo Terras e Gentes”, que faz a pesquisa para futuras parcerias entre a Mpagdp e as juntas e as câmaras, as gravações estão “muito fortes” na região, diz Tiago Pereira, acrescentando que o Baixo Alentejo “é o que está mais bem representado em gravações da música portuguesa, e que não vai parar”. Dá a conhecer protagonistas do cante e da viola campaniça e outros cantadores, documenta “ofícios e manifestações culturais, artesanato, rezas e benzeduras”, porque o projeto está interessado em todo esse “saber ancestral”. No que respeita a grupos corais, já registaram praticamente todos os que existiam nos concelhos de Beja, Serpa, Castro Verde e Almodôvar.

 

A pandemia não parou a associação. A primeira reação foi criar “A Música Portuguesa a Gravar-se a Ela Própria”, em que as pessoas gravavam vídeos em casa e mandavam para a equipa que os distribuía. Depois, foram para a rua gravar à janela mais de 60 pessoas, em Vila Nova de Poiares. Do processo nascia “A Música Portuguesa à Janela a Gostar Dela Própria” que venceu a 8ª edição do prémio Maria José Nogueira Pinto em Responsabilidade Social 2020. “Lá está o lado social da música portuguesa [a gostar dela própria]”, sublinha o mentor.

 

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Foto | Nicole Sánchez

 

UMA VIDA IGUAL AO DOS MITOS GREGOS

Antes de criar projeto, já dava que falar como realizador e documentarista, com programas na radio e na televisão, e trabalhos premiados. Diz a propósito: “Há uma altura em que percebemos que o caminho faz-se caminhando. Cada vez mais o que importa é fazer e, depois, é a quantidade de tudo o que se faz que conta.”

 

Tiago Pereira nasceu na freguesia de Colares “por acaso”, por isso diz-se de Lisboa, e é filho do músico Júlio Pereira. Cresceu com o pai e “todas as convivências musicais” da época, de Zeca Afonso a José Mário Branco, e em estúdios de gravação, o que lhe deu “uma consciência do que era a música tradicional” que, durante a adolescência, “achava uma coisa pirosa”. O interesse era, então, a música eletrónica, passando por todas as fases “do Acid House ao Drum and Bass”. Quando começou a fazer gravações foi no âmbito da composição eletrónica, usando o som dos teares das tecedeiras de Trás-os-Montes. “Sempre tive essa consciência muito megafone do João Aguardela de usar esses sons para fazer música eletrónica, que continuo a fazer com Os Sampladélicos e o Sílvio Rosado, no meu trabalho.” Mas o foco está na associação “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, que nasce da vontade de recolher, gravar e divulgar o património tradicional. O trabalho dele é contar histórias, ouvir as pessoas, registar a música tradicional, divulgar a cultura. “Costumo dizer que a minha vida é igual ao dos mitos gregos. Quando uma pessoa foge ao seu destino, o destino cumpre-se.”

 

A mudança aconteceu durante umas férias em Odeceixe, aos 25 anos, ao ouvir um homem que trauteava uma canção à janela, imitando “o som das concertinas e dos acordeões”, gravando-o. “A partir daí comecei a fazer gravações: primeiro neste intuito da desconstrução, de gravar para fazer música eletrónica e experiências artísticas, e, só mais tarde, é que comecei a ouvir as pessoas”. Inicialmente só as gravava, depois começou a conviver com elas, e a seguir “a passar os natais com as velhinhas”.

 

CRESCER A VALORIZAR O LADO FEMININO

Fala de uma infância feliz, entre dois mundos distintos. Com o pai entre concertos, numa Lisboa dos anos 80 “que começava a abrir para o mundo e para ela própria”. E com a avó, numa aldeia da Beira Baixa, com quem passava muito tempo. “De certa forma, eu acho que gravo velhinhas por causa da minha avó”, diz, explicando que através dela, conheceu o universo das mulheres: “Eram elas que faziam tudo, mas ninguém falava delas, ninguém lhes dava o valor. Portanto, eu cresci a valorizar o lado feminino que, de certa forma, pude ver sempre e contemplar no meu trabalho, porque a maior parte das pessoas que gravamos são mulheres.”

 

Lembra que, como tinham um papel muito forte nas comunidades, “eram elas que guardavam as memórias”, enquanto os homens é que tocavam os instrumentos. Salvo em regiões como a Beira Baixa, onde elas tocavam adufe. “O meu pai era músico de música tradicional portuguesa e só ficou a saber que a minha avó sabia tocar adufe um dia em que deixou o dele esquecido, e voltou a casa para o buscar. Ela estava a tocar, percebendo-se perfeitamente que tinha aprendido.” Naquele tempo, diz, “toda a gente tocava e cantava no país, porque sim, e em todo o lado, no sentido primordial, o que se começou a perder, e hoje é preciso ter hora marcada, maquilhagem e palco” para o fazer.

 

“Sempre avesso às escolas”, desistiu da Escola de Cinema no 2.º ano. Por essa altura, utiliza o som do trautear gravado em Odeceixe associando-o à imagem de um homem que tinha filmado no Carvalhal, que vivia sem água e sem luz, na curta-metragem “Quem canta seus males espanta” e ganha o prémio de melhor realizador nos Encontros de Cinema Documental da Malaposta, em 1998. Seguiram-se outros trabalhos. Em 2015, com o projeto “A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria” na rua, chamavam-lhe muitas vezes o Giacometti do século XX, numa comparação com o etnólogo que fez mais recolhas etno-musicais em Portugal, o que deu origem ao filme “Porque não sou o Giacometti do século XX”: “Achei que era importante explicar que havia muita coisa no meu trabalho que nada tinha a ver com o Giacometti e, depois, que todas as pessoas têm a importância que têm no tempo em que têm.”

 

VIVER COM UMA JANELA ABERTA PARA O MUNDO

Tiago Pereira fixou-se com a família em Serpins, que agora também é sede da associação sem fins lucrativos, que soma cerca de 6 mil vídeos publicados num portal na Internet. E onde vai lançar o Centro Interpretativo da Música Portuguesa a Gostar Dela Própria: para visitar e ter acesso a todo o projeto da música portuguesa comentada, e atividades que podem ir de workshops de ofícios e de linguagens, de construção de instrumentos e dialetos. “Há muito que se pode fazer também com viagens sonoras por Serpins para perceber o lugar, com um lado industrial e outro mais campestre.” Diz que há um universo de Serpins onde “ainda se podem ouvir histórias, um património de memórias que tem a ver com toda a identidade da terra e da região”.

 

A vila aconteceu por acaso há dois anos, e os acasos foram-se sucedendo. Um dia leu uma frase que dizia que Serpins era no fim do mundo, o que o incomodou. Por isso, fez um vídeo com o amigo Tiago Sami Pereira, que toca bombo, na praia fluvial, escrevendo ‘Serpins não é o fim do mundo, é uma janela aberta para o mundo’. A frase acabou por dar o nome à revista que lançou recentemente, ““Serpins Magazine uma janela aberta para o mundo”” – que pretende documentar o trabalho da associação, no registo da memória –, “e o mote foi levado para a freguesia a tal ponto que agora construíram uma janela de madeira no alto da encosta, onde se lê ‘Serpins uma janela para o mundo’”.

 

Sempre a criar projetos paralelos à “Música Portuguesa a Gostar Dela Própria”, não nos surpreenderia que Tiago surgisse com um novo. Entretanto, vai continuar a trabalhar no âmbito dos já em curso, como “A Música Cigana a Gostar Dela Própria”, e a “Música em Portugal a Gostar Dela própria” que grava os imigrantes e os refugiados, enquanto espera o resultado de algumas candidaturas.

 

 

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Foto | José Ferrolho/Arquivo

 

BAIXO-ALENTEJANO DE ALJUSTREL FAZ CAPA DA SERPINS MAGAZINE

O segundo número da revista “Serpins Magazine Uma Janela Aberta para o Mundo” sai em julho, e tem uma “homenagem a um velho cantador” baixo alentejano de Aljustrel: José Rosa Valente, que cantou muito tempo no Grupo Coral e Etnográfico Os Ganhões de Castro Verde. Com capa dupla, num lado a janela para o mundo, no outro o cantador à janela, a revista inclui as modas que ele foi escrevendo ao longo do tempo, textos sobre ele, e entrevistas que lhe fizeram.

Ainda associado ao território, Tiago Pereira dá conta que vão ter um vídeo magazine em colaboração com a Direção Regional da Cultura do Alentejo e com a Associação Alentejo Terras e Gentes, que se chama “Vagar Vídeo Magazine Património e Cultura do Alentejo”, que vai incidir muito no Baixo Alentejo. São vídeos mensais, que têm 7 a 10 minutos, e cada episódio tem um tema que pode ir de um ofício a um lugar específico.

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