Diário do Alentejo

Crónica: "O arquipélago Gulag"

31 de março 2022 - 11:15

Texto Rodrigo Ramos

 

Imagine o leitor que se encontra numa modesta sala de conferências, onde discursa o líder máximo da nação, que por casual infelicidade é também um dos maiores tiranos da história da humanidade. Naturalmente, quando o discurso termina, o leitor fará o mesmo que os demais: baterá palmas vigorosamente. Toda a sala rebentará então num rugido de aclamações ensurdecedoras que durará um minuto, depois dois, três, cinco… até se aperceber de que ninguém tem a coragem de ser o primeiro a pôr fim ao aplauso. Teria o caro leitor essa ousadia?

 

Talvez tivesse. Afinal, não escolhemos o tempo em que vivemos, mas podemos escolher o que fazemos com ele. Não consta que Aleksandr Soljenítsin tenha aplaudido o regime soviético. Qualquer simpatia que tenha nutrido pelo pensamento marxista-leninista, nos ingénuos tempos da juventude, fora cedo substituída pelo urgente dever de dar conta das repressões que o povo russo viveu na União Soviética, em particular nos campos de trabalhos forçados, onde esteve preso durante oito anos. Nascido apenas 14 meses depois da revolução bolchevique, Soljenítsin tinha praticamente a idade do regime e experienciou todas as fases do seu desenvolvimento. Em Um Dia na Vida de Ivan Denisovich, romance marcadamente autobiográfico, descreveu pela primeira vez o sistema prisional soviético. Vários historiadores acreditam que foi o primeiro momento em que a população finalmente tomou consciência das atrocidades por que passavam os prisioneiros políticos do período estalinista. Todavia, havia de ser com O Arquipélago Gulag que exporia a monstruosa máquina que encarcerara e assassinara milhões de pessoas. Por causa desta obra, Soljenítsin viu ser-lhe retirada a nacionalidade russa e viu-se forçado a fugir, primeiro para a Alemanha Ocidental e daí para os Estados Unidos da América. A sua nacionalidade só foi restaurada meses antes do fim da União Soviética.

 

Dividido em 7 partes, O Arquipélago Gulag não é apenas um registo biográfico recolhido a partir da memória de um prisioneiro; contém relatórios, entrevistas, testemunhos e vários documentos oficiais que descrevem com rigor o sistema judicial soviético, desde a ordem de prisão, passando pela fase de inquérito, à qual se seguia – quase invariavelmente – a inevitável condenação, até ao transporte para os campos siberianos e a insanidade e tortura quotidianas que se seguiam. Desengane-se, porém, quem espera encontrar nesta obra uma narrativa sombria e dolorosa, de difícil leitura. Pelo contrário, a voz do narrador é leve, familiar e aprazível. A lição da História que nela se encerra é uma prerrogativa do leitor e não cabe ao narrador instruí-lo. Ao invés, as ocorrências são-nos contadas como se tomássemos parte numa conversa com um amigo que nos confidencia uma história envolvente, comovente e inesquecível.

 

Soljenítsin, prémio Nobel da Literatura em 1970, escreveu o que viveu. Não podia ser de outro modo; o que sai para o papel é, salvo raras excepções, o que um homem traz na alma. Um leitor que feche este livro não será o mesmo que antes o abrira, porque a consciência do relato nunca mais o abandonará. Um leitor que sabe nunca mais poderá não saber. Editada em Portugal pela Sextante (uma chancela da Porto Editora), em 2017, esta é uma obra fundamental para compreender o regime institucionalizado de terror que fora o comunismo soviético (e como se aproxima tanto do nazismo e do fascismo). Adquire uma nova relevância nos tempos que atravessamos, em que escritores russos estão a ser banidos de planos curriculares, em várias Universidades ocidentais. Excluir um escritor do estudo académico é afastá-lo da razão crítica, do pensamento iluminista e humanista. Se essas decisões, já feridas de imoralidade, recaem sobre escritores clássicos, tomam contornos de ridículo, dado que entre estes e Vladimir Putin não rezam afinidades, pela singela circunstância de já não estarem entre nós quando Putin subiu ao poder, em 1999. Em tempos de conflito, é ainda mais premente ler os escritores, estimar as suas palavras, valorizar os relatos. Devemos dedicar-lhes, em cuidados e sincera atenção, a mesma energia com que os presentes da sala estridente brindaram Estaline, em fingida devoção, após o seu discurso. Sobre esse episódio, conta Soljenítsin:

 

Na pequena sala eclode «uma tempestade de aplausos, que se transforma em ovação». Três minutos, quatro minutos, cinco minutos, os aplausos continuam (…). Mas já doem as palmas das mãos. Já os braços levantados entorpecem. Já as pessoas de mais idade começam a ofegar. E já isto começa a tornar-se insuportavelmente estúpido até para aqueles que sinceramente adoram Estaline. Contudo: quem se atreve a ser o primeiro a interromper? (…) E os aplausos na pequena sala desconhecida, ignorada pelo chefe, prolongam-se por seis minutos, sete minutos, oito minutos!... Eles sucumbem! Estão perdidos! Já não conseguem parar, enquanto não caírem de coração rebentado! O diretor de uma fábrica de papel local (…), ao 11.º minuto, assume o ar de homem prático e senta-se no seu lugar à mesa da presidência. E então – ó milagre! – onde foi parar o irresistível e indescritível entusiasmo geral? Todos pararam no mesmo aplauso e se sentaram ao mesmo tempo. (…) Nessa mesma noite o diretor da fábrica foi detido.

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