Diário do Alentejo

Antonieta Félix: O que me motiva são "as reações de quem lê"

18 de fevereiro 2022 - 10:10

Antonieta Félix introduz-se como “alguém que não deixou de comer fruta com casca, lavada só à torneira, por causa da Covid 19, e nos confinamentos fez cursos, não pão. Com e sem esta provação, vivo com a família, música e estórias, ouvidas e lidas.” E descreve-se como alguém “de riso fácil, irrequieta, faladora, rebelde, de perguntar muito e duvidar ainda mais. Com queda para laços e amizades fortes. Intolerante, só ao egoísmo. Afogo mágoas e rego alegrias com chá. Como tudo e cozinho quase tudo. Menos bolos, ficam duros que nem chifres ou “aborrachados” que nem pneus. Um trauma de adulta, da infância não dei por trazer nenhum.”

 

Antonieta nasceu em Évora há 47 anos, mas foi o Redondo que a viu crescer, no seio da família originária daquela povoação. Viu-a crescer até aos 18 anos, altura em que trocou o Alentejo pela capital para estudar Relações Internacionais. Por Lisboa, concluiu a licenciatura, trabalhou e quase fez um mestrado. Aos 26 anos voltou à “casa de partida” e, pela capital alto-alentejana permaneceu seis anos, regressando, posteriormente, ao Redondo, onde tinha à sua espera uma casa plantada no meio de um olival.

 

Paralelamente a estas etapas de vida, Antonieta fez rádio, deu aulas a adultos, foi correspondente de um jornal diário nacional, viajou, tornou-se técnica superior numa autarquia, escreveu contos para adultos em publicações avulsas e seis livros infantis. Numa manhã de dezembro de 2010 experimentou contar estórias em público e, desde então, diz que ficou mais desassossegada e com a sensação de que desassossega os outros.

 

Aos 47 anos, é mãe de três filhos, continua a viver em cumplicidade com a casa do olival, faz aulas de pilates e uma pós-graduação em “A Arte de Contar Estórias” e garante que tem muito por escrever.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Como e quando foi descoberta a vocação para as letras?

Da minha mãe ouvi contos, do meu pai, avó e tios, estórias, episódios e ditos de vida. Os meus dois irmãos, mais velhos, liam banda desenhada, Disney e Marvel, foram esses os primeiros livros que li, durante anos.

Na escola, era tão boa aluna a português como a matemática, má na educação física e na visual, eternos calcanhares de Aquiles. Na adolescência, fiz diários, escrevinhei versos e comecei a ler literatura. Na universidade, a leitura ficou gosto sério. Seguiu-se a escrita, aos poucos, jornalística e literária. O primeiro livro infantil, em 2011, foi sugestão de quem me ouviu contar algumas das minhas estórias, na tal primeira manhã de dezembro de 2010.

 

Dos vários géneros de escrita experimentados, algum que seja o de eleição?

Entre escrever em jornais, estórias infantis e juvenis, contos para adultos, não tenho uma preferência. O que me alegra, em qualquer género, é escrever algo que chegue a alguém e que por lá fique.

 

Quais as motivações para escrever?

As reações de quem lê o que escrevo são o que me motiva. Sobretudo de pessoas que não me conhecem. Os amigos são suspeitos, o marido nem se fala.

 

Onde se vai beber a inspiração?

Inspiração, sinto quando abro o armário e, à primeira, atino com uma roupa e com uns sapatos. Num processo criativo não sei se se aplica. Prática, investigação, trabalho, sim. Um maratonista corre muito, um músico toca muito, um escritor lê e escreve muito.

 

Que papel desempenha o Alentejo na produção escrita da Antonieta Félix?

Pode-se tirar a escritora do Alentejo, não o Alentejo da escritora. Com ou sem intenção, o que escrevo tem paisagens, personagens, vivências e expressões alentejanas.

 

Quais os projetos artísticos mais marcantes no percurso de Antonieta Félix?

A participação, em 2009 e 2010, com contos para adultos, na coletânea Páginas Lentas, de Viseu, pelo espírito ímpar da edição e dos autores. Os livros infantis, publicados de 2011 a 2018: A História do Galo Airó e Outras Mais sobre Animais; O Fluviário de Mora, Por Dentro e Por Fora; 12 Meses para Contar, 12 Meses para Rimar; Ó, Vitorino; Vermelho é o Nariz; O que se passa por lá?, pelo que representam.

A experiência de contadora de estórias voluntária, em 2019, junto de crianças filhas de vítimas de violência doméstica, pelo leque de emoções.

 

Alguns momentos inusitados experimentados ao longo do percurso artístico?

Em 2012, em Portel, numa das apresentações do meu primeiro livro, num auditório, com crianças, pais e avós, um dos avós adormeceu, dormiu pesado. Uma grande lição sobre como não apresentar livros.

Muitos anos e muitas experiências depois, uma biblioteca do distrito de Santarém requisitou-me para sessões de escrita criativa. Um motorista veio buscar-me ao Redondo, às sete da manhã, a mim e a um leitão recémassado. A aromatizada viagem foi inesquecível, tal como o dia, com alunos, professores e bibliotecários magníficos.

 

Que opinião sobre o universo literário em Portugal?

Como leitora, creio que temos autores imperdíveis, idos e atuais, na prosa e na poesia, o que mais leio. Editoras, há excelentes, que publicam esses escritores e os melhores da literatura mundial, em tempo útil. Leio autores estrangeiros e é muito bom tê-los à mão. Também compro livros quando saio do país, sobretudo infantis, e com grande prazer depois vejo alguns cá editados. Há depois menos excelentes, que publicam conteúdos menos nutritivos, mas gostos não se debatem.

Como escritora, deixo para outra vez os comentários sobre as dificuldades de publicação dos autores e sobre as editoras que não o são e grassam nas nossas praças como milho para pombos.

 

E o acordo ortográfico?

Uma língua é um organismo vivo, mutável, mas também a sua identidade e história devem ser respeitadas. Mas era preciso ir tão longe, nesse evoluir, na procura do equilíbrio entre a inclusão de novas necessidades e realidades e a preservação da identidade? Algumas alterações não me fazem sentido, não me parecem úteis, outras não me chocam. Antes substituímos o ph por f, porque não aceitar a dieta dos c e dos p e deixar mais magras a ação e a receção? Implico mais com o uso de t-shirts, com tirar selfies e fazer zapping, isso sim me desgosta. Porquê vocábulos alheios e não os nossos?

 

Como tem sido vivido este período de stand by no mundo em termos de criação artística?

Com enorme admiração pelos criadores, das mais variadas áreas artísticas, que se reinventaram e desdobraram para continuarem a fazer aquilo para que nasceram, aquilo para que trabalharam toda a vida: encantar o público.

 

Que projetos moram em Antonieta Félix?

Em breve, espero satisfazer dois convites. Na Escola do Crato, trabalhar a escrita criativa com alunos do segundo ciclo e da universidade sénior, uma ideia de uma superprofessora.

Para a Lulu e os Maiores, uma cooperativa dedicada aos cuidadores de pessoas de mais idade, estou a escrever um texto para um livro infantil. Este pretende valorizar os maiores e as suas capacidades, o que podemos fazer por eles e com eles. Sem prazo: contar estórias e escrever outros textos, inclusive para gente crescida.

 

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