“Nasci no ano de 1973, no seio de uma família humilde, na minha própria casa, pelas mãos de uma curiosa com dotes de parteira”.
Assim começa por se apresentar Sandra Cristina Guerreiro Salgado, uma alentejana nascida, crescida e residente em Figueira dos Cavaleiros, concelho de Ferreira do Alentejo. Uma alentejana que é fadista, uma alentejana que é comediante, uma alentejana que é poetisa, uma alentejana que é locutora de rádio, uma alentejana com a alma atafulhada de arte.
Sandra estudou até ao 12º ano, concluído no ensino noturno, trabalhou no campo e, aos 26 anos, iniciou a sua atividade de auxiliar educativa, no jardim-de-infância da sua terra. Uma profissão que desempenha até aos dias de hoje e, à qual, atribui responsabilidade na sua faceta artística: “contribuiu para esta minha capacidade de sonhar, de brincar, de representar e, no fundo, de ver o mundo sob um olhar, diria eu, diferente”.
Texto de Luís Miguel Ricardo
Quando e como foi descoberta a vocação para as artes?
A minha vocação para as artes começou cedo. A tendência para a poesia começou na escola primária. Já nessa altura, quando me era pedida uma composição sobre um qualquer tema, eu perguntava à professora se podia fazer em verso. No campo da representação, também fazia sempre parte de qualquer teatro que fosse realizado, embora nesse tempo a minha timidez fosse bem mais acentuada do que é agora. Na parte da música, sempre adorei cantar e ainda hoje canto em muitos momentos do dia, muitas vezes sem sequer me aperceber que o faço.
Como surge a incursão pelo fado?
Sempre ouvi a minha mãe cantar fado, e adorava. Muitas eram as vezes em que me emocionava com aquelas histórias cantadas, mas só muito mais tarde senti essa vontade de também eu o cantar. E foi aí, principalmente desde o dia em que o cantei acompanhada à guitarra, que se me entranhou nas veias. Na verdade, eu sempre gostei de fado e tenho referências na família, para além da minha mãe, que, embora não fossem fadistas, cantavam muito bem o fado à capela. E eu começo a cantar também à capela, sobretudo nas rádios locais, onde também declamava poesia e fazia rábulas da minha personagem “Compadre Alentejano”. Começo então a receber convites para encontros de poesia e alguns de poesia e fado. A primeira vez que cantei acompanhada foi há oito anos, em Borba, num desses encontros. Desde esse dia nasceu em mim um vício difícil de controlar. O som das guitarras é qualquer coisa de mágico, e o fado é um sentimento que ninguém conseguiu descrever por palavras, tem de se sentir e tem de se fazer sentir.
E por onde se faz ouvir e sentir o fado de Sandra Salgado?
Tenho atuado em noites de fado, em lugares pequenos, onde o fado acontece no seu todo, porque o espaço e o ambiente o permitem, mas também já tive oportunidade de pisar outros palcos maiores. O maior que já pisei foi o Pax Júlia, em Beja, e onde desejo voltar, agora com maior bagagem. A minha vida sempre foi um palco, e nunca me importei com o seu tamanho. Tanto canto num grande palco, como em cima de uma cadeira, sempre com o mesmo carinho e dedicação. Recentemente, comecei a fazer parte da Associação dos Fadistas de Beja, facto do qual me orgulho e através do qual espero desenvolver mais aprendizagens e ter mais oportunidades.
Como é composto o reportório?
Os fados que eu canto são, na sua maioria, fados que grandes fadistas já cantaram, poemas de grandes poetas. No entanto, também canto poemas meus que adapto a músicas já existentes.
Para quando a gravação de conteúdos?
Tenho um CD caseiro, uma pequena recordação facilitada por amigos. Nunca pensei gravar a sério, porque penso que hoje em dia as novas tecnologias anularam a necessidade de certas coisas, nomeadamente de CDS de música, e porque talvez considere ainda não me encontrar nesse patamar. No entanto, não vou descartar a hipótese.
E como é conciliar o registo de fado com a representação?
Eu costumo dizer, e tenho até um poema sobre isso, que eu sou uma casa onde habitam vários inquilinos, todos eles artistas à sua maneira. Dão-se todos muito bem e, mais do que isso, completam-se uns aos outros. É uma relação bastante saudável e sólida.
Como surgem estes “inquilinos” na vida de Sandra?
As personagens surgem de uma forma natural. Chegam e entram na tal casa. Vêm-me à cabeça e ao coração. Como diz o povo, é um dom, não se explica, acontece, e a prova disso é que não é nada pré-escrito ou ensaiado, é apenas pensado. Penso num assunto por onde começar e depois acontece tudo naturalmente, dependendo do ambiente e do contexto em que me encontre.
Que motivações estão por detrás da mulher que dá corpo às personagens?
As motivações que estão por detrás das personagens que encarno são, em primeiro lugar, um escape a toda essa loucura, esse fado e essa representação que é a vida. Depois, é causar boa disposição e proporcionar momentos divertidos a quem me ouve e a mim própria. Outra das motivações é divulgar o nosso Alentejo, os seus costumes e as suas gentes. O “Compadre Alentejano” é um bom exemplo disso.
Quem é este “Compadre Alentejano?”
É uma personagem que me permite, às vezes, fazer uma crítica à sociedade em tom de brincadeira, ao mesmo tempo que me permite fazer rir o público. Num tempo em que a vida está bastante desgastante e séria, penso que as pessoas precisam de rir e dá-me um gozo imenso poder fazê-lo.
Dos projetos desenvolvidos, algum mais marcante?
Um dos projetos que mais me marcou foi o “Grupo dos compadres”, que foi um grupo de teatro que atuava nas festas das escolas e, mais tarde, noutras festas onde éramos convidados. Era um grupo, inicialmente, formado por encarregadas de educação, onde contávamos histórias cantadas e tocadas por uma rapariga que toca acordéon. Era eu quem criava as personagens, encenava e escrevia toda a história, que depois era ensaiada para ser cantada. Foi um grande sucesso do qual me orgulho. Depois de este grupo terminar, fiquei eu sozinha com a minha personagem, que não quis deixar morrer.
E a faceta radiofónica?
A rádio é outra das minhas paixões, e há quase três anos que tenho um programa de fado, com outra colega, na rádio Singa, rádio de Ferreira do Alentejo. Este programa acontece quinzenalmente, às quintas-feiras. É um espaço onde os ouvintes podem participar por telefone, cantando um fado, e onde é passado também muito fado profissional. Adoro também fazer rádio, comunicar com as pessoas e ajudar a passar o tempo, principalmente em tempos de pandemia. Sinto que tem sido um trabalho muito nobre e bastante necessário, por isso mesmo me preenche e orgulha.
Alguns momentos inusitados experimentados ao longo do eclético percurso artístico?
Tive alguns episódios caricatos, onde o público não conseguia perceber que eu sou uma mulher e não um homem, como representa a personagem. Tanto no fado como na poesia e também na representação sempre fui muito acarinhada. Quem conhece todas as facetas diz que sou a mulher dos sete ofícios. Talvez não seja perfeita em nenhum deles, mas sou feliz assim e sei que faço muita gente feliz, e, para mim, isso basta.
Como tem sido vivido este período de “stand by” no mundo?
Este período de pausa forçada tem sido frustrante, mas ao mesmo tempo tem permitido pôr em prática os dotes da escrita e de outras aprendizagens no campo do fado, aprendendo novas letras e afinando a voz. A representação e a poesia continuam por aí nos programas de rádio e nas redes sociais.
Que sonhos artísticos moram em Sandra Salgado?
Mora, sobretudo, o sonho deste nome, Sandra Salgado, ser associado a uma fadista alentejana. Neste momento, o fado é o meu maior desafio. Depois é continuar a fazer tudo o que me dá mais prazer e ser feliz!