Diário do Alentejo

Joaninha Duarte: "Resido onde as estórias são a minha casa"

10 de dezembro 2021 - 17:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

“Tenho a idade de uma velha narradora. Sou natural de uma terra desabafada: Cabeção. Resido onde as estórias são a minha casa.” Assim se introduz Joaninha Duarte, escritora, investigadora e, sobretudo, contadoras de histórias.

 

Joaninha é doutoranda em Ciências da Educação e Formação de Adultos – investigação na formação experiencial do contador de estórias, pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa; mentora e coordenadora da primeira Pós-Graduação “Arte de Contar Estórias”, no Instituto Superior de Educação e Ciências e professora do ensino superior.

 

Ao longo da carreira desempenhou várias atividades sempre com uma âncora na cultura e na arte. No campo das publicações, conta com artigos em revistas da especialidade e várias obras literárias editadas a solo e em coautoria, de que são exemplos: “Contos de Entredentes e Entrelinhas” ou “A Luz da Cal ao Canto do Lume”.

 

Quando e como foi descoberta a arte de contar, de escrever, de partilhar “dizedelas”?

Fiz-me assim… lá, num tempo em que a minha bisavó Angélica era parteira e só conhecia as letras faladas: “Conto a estória da minha terra, em cada parto que faço”. O meu avô Pina só sabia assinar o nome, mas era um contador de “dizedelas”. Quando chegava ao pé de um rancho de pessoal, ria-se dele próprio e fazia rir toda a gente. O meu tio-avó César era “um poeta popular que acreditava em contos de fadas”, como escreveu Fernando Namora. A minha mãe Joaquina, nas suas infinitas tarefas, ainda tinha tempo para me embalar e contava-me contos cantados. O meu pai José Duarte, nas longas viagens que fazíamos, contava-me estórias até chegarmos ao destino. A Ti Tóda tinha pena de não saber cantar, mas de tudo fazia uma estória: “Era uma vez uma estória de nada, com umas mãozinhas de nada, prontas a oferecer...” Contava como uma contadora de estórias. A sua narração era compassiva e provocava uma escuta criativa. No seu regaço, as palavras ancestrais pareciam sair de um santuário, de onde nada de mal nos podia acontecer. Por tudo isto e mais uns taleigos, sou assim, uma contadora cantadeira. Foram estas mulheres e estes homens, mestres da palavra, que me foram educando na escuta para o texto dos silêncios. Assim, com o ouvido afinado escutei um dia o António Fontinha a contar para anciãos, na Feira Pedagógica “Brinca Lá” (1998), iniciativa das educadoras de infância do concelho de Mora. Rendida e embalada pela sonoridade da palavra há muito escutada, mas agora dita e redita por alguém mais novo, fez-me encontrar o filão de contadeira de estórias.

 

Dos vários registos artísticos, algum que seja o de eleição?

Quando amamos aquilo que fazemos é difícil dizer aquilo de que mais gostamos. Mas reconheço que quando conto estórias trago o meu peito cheio de falas do Alentejo e do meu País, contadas e rodadas, ditas e paroladas, e no meu mais puro som, todas elas são cantadas.

 

Que papel representa a componente académica na carreira da contadora de histórias?

Ganhei consciência da importância da academia, quando, em 2003, a menina-memória, Ana Paula Guimarães, me perguntou: “A Joaninha conta estórias, por que quer fazer o mestrado?”, ao que lhe retorqui: “Porque quero saber o que ando a contar.” Neste infinito fio do contar descobri que em cada estória existe um multiverso, o qual vai sendo descoberto à medida que vai sendo narrada e se faz a ‘(és)tória’. Desde que apresentei à direção da Escola de Educação do ISEC Lisboa a Pós-Graduação “Arte de Contar Estórias”, a qual foi aceite, entusiasmo os muitos estudantes que por ali têm passado e acarinhado o ofício de narradores, para escreverem sobre narração oral. Na academia gosto muito de ler, de estudar, de escrever, de dar aulas, mas sublinho com emoção quando sou convidada para fazer palestras com estórias!

 

Que papel tem o Alentejo na arte de Joaninha Duarte?

O Alentejo alumia-me para onde quer que eu vá. Tenho necessidade de regressar amiudadamente ao “chão” alentejano, porque só ele me amplia nos silêncios que preciso de fazer na minha alma para continuar viajem.

 

Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira, alguns que tenham sido mais marcantes?

A Assesta, um grupo de escritores que promove a palavra pela escrita, num “sotaque” alentejano. A eFabularia Almada Mundo, uma oficina permanente da palavra, onde um grupo de mulheres se junta para quase contar o que há de mais misterioso no ser humano. As Dizedelas (ou ‘dizedeles’), projeto que preconizo com a musicista Marta Duarte d’Almeida, uma artista que se está a internacionalizar e que tenho a bênção de ser minha filha.

 

Alguns momentos inusitados experimentados ao longo da carreira?

Há momentos inusitados e inesperados que fazem as delícias das minhas memórias. Mas também há momentos que nos marcam para sempre, como as entrevistas que tenho realizado junto dos contadores de estórias deste País, na investigação que estou a fazer sobre a formação experiencial do contador de estórias. É um verdadeiro encontro entre almas narradoras que cunham a palavra ‘(és)tória’, num lugar ameno, a caminho da palavra paz.

 

Que papel desempenham as novas tecnologias na carreira de Joaninha Duarte?

“A cerca das palavras encantadas”, assim chamo às janelas da Internet, tem sido grande aliada neste momento pandémico. No início foi um desastre, mas depois comecei a explorar os sentidos da visão e da audição, as micro expressões, o gesto, o espaço e a luz, e a sentir como era bom tornar este ambiente digital o mais orgânico possível. Trabalhar neste ambiente digital tornou-se um desafio constante e aliciante.

 

E sobre o novo acordo ortográfico, como é a relação entre ele e a artista Joaninha?

O acordo ortográfico é uma velha questão que merece ser refletida. Gosto de escrever à antiga, mas reconheço que o meio académico não se compadece com essa maneira de escrever. Por outro lado, e convocando Fernando Pessoa e outros autores que nos lembram que a nossa pátria é a nossa língua, gosto de pensar que a língua é dinâmica e viva, como tal merece evoluir e fluir com o ser humano.

 

O que está na “manga”?

O que está na manga rodeia-me logo pelas seis da manhã quando beijo a aurora: saudar a vida numa espreguiçadela sem vontade de ter fim; olhar para as fotos dos meus filhos e inspirar-me neles para continuar a batalhar; olhar para os objetos que fazem parte da minha mais recente estória “Dá-me uma pinguinha d’água” e lembrar-me que a escrevi para os meus netos e a pensar em como todas as crianças podem ser a água doce do futuro; pousar os olhos num ‘post-it’ que já tem algum tempo, redigido pela minha filha que diz: “Há uma tese por terminar! Há um mundo que precisa que tu os faças!”; continuar a ser um ponto de luz, nem que seja pálido, para os meus amores! Haja vida! Que a palavra dos meus sonhos é retribuir, como alentejana e portuguesa!

 

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