Diário do Alentejo

Sofia Paulino: “A ilustração nunca deverá ser representativa”

06 de dezembro 2021 - 12:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Sofia Paulino nasceu e cresceu em Reguengos de Monsaraz, terra de onde saiu para estudar Estratégias e Gestão Turística, no Instituto Politécnico de Beja. Uma formação à qual não deu seguimento profissional, tendo optado, em parceria com o marido, por abrir uma livraria em Castro Verde. Uma atividade que, mais do que vender livros, se revelou inspiradora para incursões diversificadas no universo das artes, de que é exemplo maior o projeto “Contadeiras de Histórias”, um trabalho que alia a escrita às artes plásticas, passando por outros campos de atuação. “São personagens, bonecas de papel que criam histórias através das peças de artesanato de autor”.

 

Deste projeto já nasceram dois livros infantis, escritos e ilustrados por si: “Contadeiras de Histórias” e “Contos ao Vento”. A que se juntam participações em obras de outros autores, de que é exemplo “O Planeta Mudari e os Mudarekos”, da autoria de Rita Vilela, e em alguns livros de poesia e prosa. O artesanato é outra das suas vertentes artísticas, expondo e comercializando as suas criações um pouco por todo o território.

 

Quando e como foi descoberta a sua vocação para o universo das artes?

Desde sempre que me senti desperta para as artes. Gostava de experimentar materiais e coisas diversas. À semelhança das manchas de Rorschach, em qualquer objeto, mancha ou qualquer outra coisa, eu via sempre uma segunda possibilidade. Tudo ganhava forma na minha imaginação. Quando andava no secundário, nas férias de verão, trabalhava em pintura, numa olaria. Mas a descoberta e o momento exato, surgiu já com a livraria e com “As Contadeiras de Histórias”. Na livraria arranjava muito material considerado inútil, e desse material surgiram as primeiras peças de um projeto que já vai a caminho dos 10 anos de existência. O mundo das Contadeiras gira em torno de livros, de jogos de palavras e brincadeiras com autores e títulos ou excertos de livros. Só para dar um exemplo, umas das minhas peças chama-se arco singular, que é o título de um livro de uma escritora de que gosto muito – Maria Gabriela Llansol; ou outra ilustração que se chama "Pelo sonho é que vamos…", referência a Sebastião da Gama. Depois das peças, surgiram as histórias que eu distribuía pelas pessoas que adquiriam as peças. Um dia resolvi começar a ilustrar esses textos e assim surgiram os livros.

 

Dos vários registos artísticos, algum que seja o de eleição?

Não consigo definir um, porque todos estão cá dentro, e umas vezes sai um, outras sai outro. Nem sempre estamos no mesmo momento de criatividade, e hoje sai-me a palavra escrita, amanhã a ilustração. A escrita é um processo, mais complicado se for extenso. Quando me dá o ímpeto de escrever posso fazê-lo em casa, num café, numa sala de espera, que nada me interrompe o pensamento. No entanto, se for um texto extenso, o fator tempo pode ser bloqueador. A ilustração para mim é libertadora, se o fizer sem pressão. É como uma terapia, que nos transporta para um lugar leve, em que não temos corpo, só visão e mãos que veem e que fazem.

 

Há uma conciliação de valências artísticas no percurso de Sofia Paulino?

Estou a preparar um projeto que acaba por focar essa temática. Vai chamar-se: “Do objeto à palavra – Da palavra ao objeto”, e fala sobre isso. Posso dar um exemplo: Um dia em casa da minha mãe partiu-se uma chávena. A partir daí, transformei este objeto numa ilustração tridimensional. A partir da ilustração surgiu um poema. O poema chama-se "Havia na mala do enxoval". Estes três pontos que parecem aleatórios, juntam-se quando percebemos o poema que conta o que há numa mala de enxoval e que guarda para o fim a revelação de uma chávena partida. Esta é a correlação entre os fatores ou, como lhe chamo, o vício da criatividade.

 

É um trabalho contínuo?

Num contexto de livro é um trabalho continuo, que tem outras regras. Na minha ilustração complemento o texto. Para mim, num álbum ilustrado tem de haver três espaços: o da escrita/história, o da ilustração e o do leitor. A ilustração de um livro deste tipo nunca deverá ser representativa. Se o for roubamos o lugar do leitor. Se o leitor lê que “um menino vai a correr” e na ilustração estiver um menino a correr, o leitor só vê um menino a correr, mas sendo os livros a tal janela para o mundo, em vez de um menino a correr, podemos ver só um pé, podemos ver pássaros, podemos ver vento, podemos… ou seja o leitor tem outras possibilidades, o lado criativo da criança/leitor é estimulado.

 

Que papel desempenha o Alentejo nas criações artísticas de Sofia Paulino?

 O Alentejo corre-me no sangue. Tudo o que fazemos e o que criamos genuinamente é uma conjugação de fatores externos e internos. No meu trabalho, apesar de ser um artesanato de autor, ou mesmo nas ilustrações, há muitos pormenores que nos remetem para o Alentejo. As linhas, que eram as linhas de meia da minha avó, estão sempre presentes, os bordados da minha mãe fazem parte, as comadres, os elementos naturais como os troncos ou a representação da natureza estão sempre lá. Tive, por exemplo, uma exposição intitulada "Amor em tempos de Cante", novamente a literatura com uma proximidade com o título de Gabriel Garcia Marques e que inaugurou a 14 de fevereiro, em Serpa, dia de S. Valentim, por abordar a temática do amor no Cante Alentejano. Era uma exposição crescente, pois para cada localidade que ia, iam sendo acrescentadas peças de acordo com o cancioneiro dessa localidade.

 

Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira, algum que seja mais marcante?

Terei de falar no primeiro livro “Contadeiras de Histórias”. Surgiu enquanto estava numa feira do livro, em Castro Verde, quando ainda tínhamos a livraria. Naquele momento, sozinha na tenda, ocorreu-me a história e, em cinco minutos, ficou escrita. Posso dizer que está no livro com as mesmas exatas palavras. O texto era distribuído em folhinhas A5 enroladas como pergaminhos. E um dia decidi começar a ilustrar. Em conversa com a Cristina Taquelim, na Festa dos Contos, em Montemor, ela leu o texto e perguntou-me: “Tens isso pronto para as Palavras Andarilhas?”. Imediatamente aquele foi o objetivo. O livro foi apresentado nas Palavras Andarilhas, e teve muito boa aceitação. Entrou para a lista do Plano Nacional de leitura.

 

Alguns momentos inusitados vividos ao longo do percurso artístico?

Quando lancei o primeiro livro, o meu filho Simão era pequeno, tinha cerca de três anos. E, como tal, para onde quer que eu fosse ele ia sempre comigo. E lembro-me de, a meio de uma apresentação, na Livraria Leituria, ele levantar-se e começar a cantar a música do genérico do Dartacão. Uma outra coisa que me acontecia várias vezes, quando me contactavam para atividades com o projeto “Contadeiras de Histórias” e eu dizia que não podia nas datas requeridas, diziam-me se não podia ir outra das “Contadeiras”… Acontece que as “Contadeiras de Histórias” são as bonecas, as personagens, com as quais eu conto as histórias.

 

Que sonhos artísticos moram em Sofia Paulino?

Eu não tenho um sonho artístico, tenho muitos. São os que surgem todos os dias, porque hoje quero fazer uma coisa, amanhã quero acrescentar outra e no dia seguinte ainda quero fazer outra, dentro da mesma área, ou não. Muitos destes sonhos podem ser atingidos e estarem na gaveta. Não é a exposição e reconhecimento, apesar de gostar como qualquer pessoa, que são os pilares para a concretização destes sonhos quase diários, mas sim a superação de mim mesma.

 

O que está na “manga”?

A curto prazo está o lançamento de mais um livro, ainda este ano, com texto e ilustrações minhas. Irá chamar-se "Palavras bonitas – um poema pequenino", e foi mais um daqueles exercícios de “história, cria ilustração e cria história”, o tal ciclo da criatividade. É um livro pequeno, para se consumir devagar, pausado, leve, e que fala, subjetivamente, como é meu apanágio, de tudo aquilo que nos passa pela cabeça, nos move o pensamento e nos inquieta. Com uma escrita poética, é um livro com asas, em que cada um define as suas palavras bonitas. Também uma edição do Grupo Narrativa, com a chancela Simon's Books. A médio prazo, surgiu a oportunidade de ilustrar um livro com 14 nomes da narração em Portugal que vão escrever as histórias, coordenado pela Benita Prieto, uma fantástica narradora que vai fazer a ponte entre Portugal e o Brasil. O livro vai ser editado em Portugal e no Brasil, em 2022, com possibilidade das ilustrações serem expostas na Bienal de S. Paulo. A longo prazo, quero continuar com os livros infantis, tirar aqueles que ainda estão na gaveta, mas quero poder editar também os de literatura, em que ainda estou a trabalhar, associando-os com exposições e instalações, como um conceito e não apenas como um produto.

 

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