Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: "O Vinho"

25 de setembro 2021 - 09:00

 

Era o vinho, meu bem, era o vinho ouvi cantar mil vezes, desde menino. Entoada ao disfarce, longe da seriedade das modas, espécie de cantiga de Entrudo. Talvez que ela seja vulgar no nosso País, mas sempre a ouvi, repetidamente cantada na minha aldeia do nosso Alentejo. Parecendo de raiz, de tão corriqueira. Era a coisa que eu mais adorava, prosseguia, rematando com convicção de só por morte, meu bem, só por morte, o vinho eu deixava.

 

O vinho, mais do que tudo, uma paixão. Desde gregos e romanos, que lhe consagraram deuses e o veneraram com sentimento, reconhecendo-lhe virtudes escondidas. In ‘vino veritas’, diziam os de Roma. O vinho é coisa santa, faz o cantar miudinho emparelham, com eles, as nossas gentes, intentando o caminho do sagrado.

 

Todavia o Baixo Alentejo só agora desperta de um sono que deixou a vinha reduzida a pequenas ilhas, pouco mais que Vidigueira e Vila de Frades, Alvito, Granja, Amareleja e Pias e todas com produção reduzida. A filoxera? A apetência alternativa pelo olival?

 

O país vinhateiro que somos, só o era do Tejo para cima até há pouco. Entretanto, o hábito de beber vinho não se perdeu no sul alentejano. Se queres que eu cante bem, dá-me gotinhas de vinho. Mesmo no tempo da fome, as tabernas foram locais de ajuntamento, de desabafo, de conversas mais arrastadas que o usual. De revolta. Os taberneiros incentivando o consumo ou só querendo fazer bonitos em papéis amarelos espetados nas paredes: Bebe à vontade, sem medo/ E se ficares de grão na asa/ Nós guardamos segredo/ e vamos levar-te a casa. Só que muitos não iam. Alguns malhavam com os ossos no Posto.

 

A GNR tinha ordens para prender aqueles a quem se desatava a língua com o vinho. Salazar, que gostava de vinho, parecia não gostar de ver nos outros os seus efeitos, especialmente os que punham em causa o Regime. O camelo é o animal que passa mais tempo sem beber: não seja você camelo, tornavam os papéis da parede, sujos pelas moscas, ao lado da gaiola do pintassilgo. Se vires um homem caído na rua respeita-o, pode ser um bêbado, continuavam, agora com acento filosófico.

 

Tabernas antigas como templos, de balcão de mármore carcomido pelo sarro, sombrias, em ruas escusas. Lugares de perdição, para alguns. O consumo dos rurais alentejanos sempre foi diferente dos do norte. No norte o vinho estava ligado ao trabalho, fazia parte das contrapartidas pagas aos jornaleiros. Supunha-se que aumentava o rendimento da enxada. Homens e mulheres bebiam, em quantidade, vinhos de graduações geralmente baixas. Até crianças, nas sopas de cavalo cansado. No sul, o vinho estava (e ainda está) ligado ao lazer. Desde que me entendo é coisa de homens, ainda que nos dias de hoje as mulheres tenham ganho o espaço que merecem. Os rurais do Alentejo nem em casa o bebem, quanto mais cheirá-lo no trabalho. Consomem-no nas vendas. Mais que menos, conforme as posses. Em grupo. Em rodadas. Incendiando o cante. Em tempos de escuridão, até o proibido: Há lobos sem ser na serra/ Eu ainda não sabia...

 

As talhas alinhadas junto à parede nas adegas da Cuba e da Vidigueira. O barro tentando baixar temperaturas nas ardentes fermentações. Momentos de ansiedade. As abóbadas dando a mão. O cante tentando acalmar os ânimos: Quando eu vejo vir no campo/ Carros à meia ladeira/ Lembram-me as moças da Cuba/ E o vinho da Vidigueira...

 

O humor à solta, parodiando vinho. Os dois de Vila Alva que, à beira de uma ribeira, só de verem um achigã saltar na água beberam cinco litros. O caleiro de Moura que prendeu o macho na argola da adega e que, enfrascando-se de vinho novo, não deu por uma trovoada que se abateu sobre Alvito e lhe derreteu a cal. Mas que já na rua, no meio da desgraça, ainda conseguiu glorificar o vinho novo com um grito de alívio que os mais velhos ainda recordam: - Mas bom vinho, porra!...

 

Quem bebe sem consciência, num contínuo, não lhe chamam uma pipa mas uma talha. Da Aldeia do Mato vinham essas grandes unidades em cerâmica, de 500 litros ou talvez mais. Aí fervia o vinho, espreitado continuamente pelo adegueiro, fazendo cruzes até chegar o S. Martinho.

 

O Zé Amante, o Pêra, da Amareleja. Nunca abriram um livro de teoria. Viveram uma vida inteira encostados à tradição, reverenciando a uva de pendura de vinhas velhas, com o olho no batoque de cortiça atacado de junça em que enfiavam uma cana mais fina que um dedo meiminho por onde languidamente as talhas se aliviavam para alguidares. Junto a elas recebiam os acólitos em mesas esconsas. O vinho novo acompanhado por azeitonas mal curtidas, retalhadas ou pisadas. A linguiça fresca, assando na brasa.

 

O vinho ainda doce, aflorando espuma, em copos pequenos, de vidro muito lavado. Vila de Frades que hoje já não tem abades/ mas adegas que são catedrais/ onde os palhetes fazem brilharetes/ que são de beber e chorar por mais, como lhe cantam os de Ficalho, é outro local mítico onde cai gente de toda a região logo que alguém, no distrito de Beja, passa a palavra de vinho novo. Fialho, filho da terra e o seu “O País das Uvas”, glorificando tempos de produção passada. Vinho e amigo, o mais antigo. E o ano em que, dentro de uma talha, caiu um rato lá na Vidigueira e em que o vinho foi tão barato já não há quem queira, como ainda hoje se recorda numa cantiga jocosa.

 

A gente do sul presa no bálsamo que vem da uva. O vinho como adubo da alma. Felizmente que, sobre ele, novos tempos despontam no Baixo Alentejo. A quantidade, mas especialmente a qualidade, vieram ao de cima. Que continue a festa. A vida merece.

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