Diário do Alentejo

José d’Encarnação: “Os escravos honraram a senhora!”

19 de agosto 2021 - 09:55

Texto José d’Encarnação, arqueólogo

 

Expõe-se no Museu Regional de Beja / Museu Rainha D. Leonor estranho pedestal romano, privado, desde já os tempos romanos certamente, do busto que o encimava. A inscrição em latim da sua face anterior revela uma realidade bem sugestiva e, porventura, exemplar.

 

O MONUMENTO

 

Descobriu-se o monumento, em 1958, no decorrer dos trabalhos de escavação realizados junto ao mercado da cidade de Beja. Abel Viana foi o primeiro a fazer-lhe referência em “O Arquivo de Beja” n.º XV, desse mesmo ano, pág. 21-22. Aliás, realizou-se de 15 a 20 de dezembro desse ano de 1958, em Lisboa, o I Congresso Nacional de Arqueologia, e o arqueólogo pacense não deixou de aí dar conta do singular achado, apresentando a comunicação “Lápide bejense, consagrada a Juno”, que viria a ser publicada no II volume das “Atas e Memórias” desse congresso, em 1970, pág. 107-112.

 

Ciente da importância do achado, Abel Viana voltou a aludir-lhe no número duplo de “O Arquivo de Beja”, de 1961-1962 (XVIII-XIX), na página 144, em que publica, inclusive, fotografia das intervenções de 1958. A inscrição que ostenta virá, pois, por esse motivo, a entrar no circuito científico internacional, na medida em que figurará, sob o n.º 1484, em “Hispania Antiqua Epigraphica”, suplemento anual da conceituada revista madrilena “Archivo Español de Arqueología”, n.º 8-11 (1957-1960).

 

De mármore de Trigaches, com 59 centímetros (cm) de altura por 25,5/30 de largura e 17/19,5 de espessura, é o que, em escultura, se designa hermes, porque, a princípio, essas colunas prismáticas quadrangulares estavam encimadas pela cabeça do deus grego Hermes, equivalente ao romano Mercúrio.

 

Começaram por ter uma função, digamos assim, quase utilitária, porque, colocadas junto aos caminhos, invocavam a proteção da divindade sobre os viandantes, uma vez que Hermes era patrono dos comerciantes, necessitados de serem superiormente protegidos contra a ladroagem. Pouco a pouco, porém, outras divindades substituíram Hermes e, no tempo dos romanos, em vez de divindades, não se hesitou em figurar no busto pessoas de elevada importância social.

 

Tinham em cada face lateral, como é o caso do exemplar bejense, “uma concavidade proximamente quadrada, com 77 cm por 80 de lado e 27 de profundidade, destinada ao encaixe de pequenos troços prismáticos de madeira, bronze ou pedra, para servirem de suporte a coroas, grinaldas, e outras oferendas”, escreve Abel Viana (1958, p. 22).

 

Há, no topo superior, “um espigão quase circular, com 25,5 cm de diâmetro transverso e dois a quatro centímetros de saliência, esculpido de modo a poder encaixar-se nele e ficar seguro pelo próprio peso um busto, ou simples cabeça, de mármore ou de bronze”, explicitou desde logo Abel Viana (1958, p. 21).

 

A INSCRIÇÃO E O SEU SIGNIFICADO

 

De interesse maior era, sem dúvida, a inscrição patente na face anterior, que diz, vertida do latim para português: “À Juno da nossa Secunda – os escravos Primogene e Félix”.

 

Importa frisar que não se entendeu, a princípio, o verdadeiro significado do texto, mormente no que concerne à entidade a que os dois escravos haviam dedicado o hermes.

 

Assim, Abel Viana escreveu: “Os servos Primogene e Felix consagraram a Juno aquela memória” (1958, p. 22). Tendo solicitado a opinião do conceituado professor Scarlat Lambrino, este lhe esclareceu que, na epígrafe, o nome da deusa estava “seguido do epíteto”. E terá sido, quiçá, por isso, que Julio Mangas, no seu trabalho “Esclavos y Libertos en la España Romana”, de 1971, depois de sugerir que Felix poderia ser de origem africana, acrescenta que ambos são “devotos de Juno, aqui apresentada como Secunda”, sugerindo que “pode tratar-se de um caso de sincretismo em que, sob a palavra Iuno está Tanit, divindade púnica” (p. 123).

 

Parece, na verdade, ter sido tudo isto um verdadeiro quebra-cabeças, porque, num livro sobre todas as inscrições romanas conhecidas até então na Península Ibérica, intitulado “Inscripciones Latinas de la España Romana”, publicado em Salamanca no ano de 1971, se dá como nome da pessoa aí mencionada “Secunda N. Primogene”.

 

Será Jorge Alarcão, no seu “Portugal Romano” (1974, p. 161 e 1983, p. 171), que explicitará o sentido do texto: «Não se trata certamente de inscrição à deusa Juno, mas ao espírito divinizado de Secunda ao qual dois dos seus escravos prestam culto”. É já uma aproximação ao verdadeiro significado do monumento, porque, na verdade, não se trata do ex-voto a uma divindade, neste caso, Juno, a esposa de Júpiter segundo a mitologia, mas sim da homenagem a uma senhora, a quem é atribuído um espírito divino.

 

Ou seja, explicando melhor: segundo a crença dos romanos, cada homem tinha o seu Génio, a centelha de espírito divino que o guardava (assim a modos do anjo da guarda da religião cristã); e cada mulher tinha a sua Juno! Portanto, neste caso, não há epíteto (ou cognome) nenhum da divindade: Secunda é simplesmente homenageada por, nas suas grandes qualidades de mulher e dona (recorde-se, os escravos eram “propriedade” dos senhores!), ter um halo divino a envolvê-la. E, por isso, Primogene e Félix decidem mandar esculpir o seu busto e colocá-lo num hermes! E com toda a ternura não hesitam em chamá-la de… “Nossa”, um possessivo deveras carinhoso e bem elucidativo.

 

Compreende-se o elevado significado social – e até económico! – deste gesto. Económico, porque se deduz que estes escravos haviam ajuntado bom pecúlio para arcarem com as despesas do monumento. Social, porque, ao contrário do que amiúde se faz crer, nem tudo no Império Romano era “esclavagismo”; e, se alguns escravos poderiam ser, efetivamente, tratados como “coisas”, de muitos outros se sabe que foram professores, preceptores, encarregados dos negócios da ‘villa’ do senhor como ‘vilicus’ (feitor)… Primogene e Félix estavam no grupo destes últimos!

 

Se atentarmos, por fim, que houve, em Pax Iulia, mais um destes hermes e que de nenhum outro se conhece a existência, até ao momento, na Lusitânia romana, superiormente enaltecido fica o significado cultural desta, aparentemente, singela epígrafe.

 

Em Pax Iulia, no século II da nossa era, em plena época romana, havia escravos sim; mas o facto de estes terem mandado gravar em pedra, a fim de perdurar para todo o sempre, esse seu estatuto servil demonstra claramente que tinham orgulho na condição em que estavam, por, naturalmente, serem bem tratados. Esse aspeto fica, de resto, patente não apenas na circunstância de homenagearem quem os comprara mas também na forma esbelta, pública e eloquente como o fizeram, quer se pense que o monumento se destinava a ser colocado no pátio interior da casa, quer na sua frontaria ou num lugar público – como José Luís Madeira sugere na sua proposta pictórica, que muito agradeço!

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