Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: Postal do Algarve

18 de agosto 2021 - 17:30

Sei de uma rua com muita história que no mês de agosto acompanha as minhas férias. À sua beira passo cerca de trinta dias, ano após ano.

 

É uma rua comprida que há menos de um século prolongava o caminho que da Serra algarvia conduzia ao mar. Por ela vinham os habitantes dos cerros próximos deixando para trás o mundo difícil onde heroicamente sobreviviam encostados a duas belgas de centeio, meia dúzia de amendoeiras, três pés raquíticos de vinha, duas figueiras, um porco engordado com o que sobrava, um bando de galinhas e meia dúzia de ovelhas churras.

 

Gente empedernida que só a custo deixava o seu mundo, a não ser em busca de cura para os males do corpo ou para fruição de raros dias de festa.

 

No mês de agosto, pelo São João da Degola chegavam em burros aprontados com alforges de empreita onde traziam as mantenças destinadas à função, assim como a infusa de água do poço e o vinho de dezasseis graus metido em garrafões empalhados.

 

Um harmónio dedilhado com presunção não só animava a marcha como dizia aos privilegiados da beira-mar que eles também eram gente. Chegando à praia, armavam somblacho com uma manta sustida em quatro canas tanchadas na areia para se resguardarem do sol, sob que descalçavam as botas, as calças e as saias e, em ceroulas e combinações bordadas, mergulhavam no mar os corpos avessos a banhos, para mais de água salgada. Coisa fugaz, comemorativa do dia festivo, a água como purificadora do corpo e da alma. O Banho Santo!

 

Os residentes locais, pescadores na sua maioria, habituados a um horizonte sem limites que se abria sobre a imensidão salgada, gozavam com esta gente bisonha, vinda das brenhas, confinada a uma magra nesga do mundo.

 

O quadro descrito acima já não pertence aos dias de hoje, é coisa de uma geração sofrida, coeva dos nossos avós, mas, para espanto dos leitores, a ele assisti no mesmíssimo local, vai para dois anos! Uma representação, evidentemente.

 

Personagens com trajes da época, com o burro presente e até a concertina, se apresentavam na praia tentando reviver o passado. A autarquia de Vila Real de Santo António e o município de Cacela quiseram prestar homenagem à gente sacrificada do Barrocal que todos os anos ali se deslocava pelo S. João, o que é de louvar.

 

Na mornidão dos dias vividos na popular Manta Rota não fica mal recordar tempos idos. A partir deles chegámos aos de hoje, talvez menos humanizados mas felizmente com outro conforto.

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