Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: Malhar no ócio

06 de agosto 2021 - 09:50

Atirar com um pedaço de ferro ao ar pode não ser ao uso da Póvoa. Afirmam as más-línguas que os da Póvoa de S. Miguel, no termo de Moura, é que atiravam com bicos de charrua à cabeça uns dos outros e, quando acertavam, diziam que era brincando.

 

Jogar ao ar uma redondela de ferro, da conformidade da tampa de um cântaro, contra um pino de madeira ou prego espetado no chão à distância de 15 passos, pode ser outra coisa. É, efetivamente, uma forma de competir. No Alentejo chamam-lhe jogo da malha. Malha é, assim, a tal redondela muito diferente de um bico de charrua.

 

Por quase todo o Alentejo generalizou-se o jogo entre os homens, já que as mulheres não têm ócio onde malhar. Todavia joga-se de diferentes maneiras e até recebe diferentes nomes conforme os sítios. A modalidade mais vulgar é jogar a malha a pinos de madeira mas em certas povoações raianas da Margem Esquerda do Guadiana utilizam-se grampos de ferro, os malhões, que se espetam no chão. Neste segundo caso é jogar ferro contra ferro, a malha contra o malhão. Não que aqui as gentes acusem mais bruteza, só que assim as obriga a tradição de malhar em ferro frio.

 

Seja como for, a malha é um jogo corriqueiro cujos princípios ninguém conhece. Entretém os homens desde tempos imemoriais enquanto os ajuda a confrontarem-se uns com os outros, duas coisas de que precisam como do pão para a boca.

 

Como se chama o espaço da disputa, também ninguém sabe. Locais com nomes esquisitos, em geral ingleses, há muitos no Alentejo turístico para modalidades mais sofisticadas: ‘rings’, ‘courts’, ‘greens’ e assim por diante. Sobre isso, os naturais do sul interior coçam a cabeça e deixam passar. O terreiro pelado e batido onde se joga à malha não tem nome. Podia cair-se na tentação de chamar-lhe em bom português malhal ou malhadal mas estes termos designam, desde há muito, coisas diferentes. Os residentes tomam a parte pelo todo e chamam jogo da malha ao local da disputa. É quanto basta.

 

A ele se chegam amiúde para jogar ou ver jogar. Encegueirados na sua prática, mas sem pretensões quanto ao modo como se apresentam. Ninguém se lembraria de vestir traje desportivo adequado, como, de imediato, teriam feito os ingleses. Já se imaginou o nosso patrício de calça justa abotoada abaixo do joelho, de boné de pala, sapatos e meias de lã, casaco desportivo com emblema a condizer, pegando com toda a fleuma na malha de ferro? O seu a seu dono. O aficionado daqui joga como vem vestido, mais asseado ou menos limpo, de acordo com a esquisitice da mulher que cuida dele. Estou em crer que se um dia alguém lhe falasse em envergar equipamento para jogar à malha nunca mais poria o pé no local da refrega. Se querem gente suscetível procurem-na no Alentejo. Como alentejano que sou reconheço que não há nada a fazer. Somos assim, casmurros e convencidos. Para o bem e para o mal. É uma questão de feitio ganho à nascença.

 

O “jogo da malha” é o jogo de ar livre mais comum em terras do sul. De acordo com os folhetos de promoção turística é um jogo tradicional. Parece não haver dúvidas. Na verdade, muitos anos deve ter, já que contínuas gerações o praticam com paixão. Que aqui colheu uma apetência superior a qualquer um dos antigos jogos, também não restam dúvidas.

 

Em algumas terras do Alentejo, naquelas onde a malha é lançada a um malhão de ferro, chamam-lhe, por vezes, jogo do envido. A coisa tem explicação. A páginas tantas, se numa jogada uma das equipas (normalmente de dois jogadores) fica em posição favorável com a malha próxima do malhão, envida ou desafia a outra a aceitar, em seu proveito, um ganho antecipado de pontos. Se sim, inicia-se nova jogada. Se não, continua a disputa. Daí o nome da variante, com mais esse passo emotivo a quebrar o ramerrão. Todavia estamos ainda nos domínios do jogo da malha que ocorre sempre nas imediações de uma venda de vinho. As partidas não se disputam a dinheiro mas a copo. Ocorrem por isso sobre a tarde, preferencialmente em dias com bom tempo após o trabalho, horas em que o nosso patrício costuma molhar o bico antes do jantar,

 

A malha é, assim, além de um murro no ócio, uma forma do alentejano aperitivar em companha dos amigos.

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