“Sortes”, uma produção luso-alemã filmada na serra de Serpa por Mónica Martins Nunes, teve estreia mundial no Festival Visions du Reél, na Suíça, em abril, e estreia nacional no festival Curtas Vila do Conde, que chegou ao fim no passado dia 25. Segundo a realizadora, o filme “foi-se construindo à medida que foi feito”, porque não era sua intenção “chegar com uma ideia e ilustrá-la por imagens”. Queria, sim, “dar o tempo para o lugar e as pessoas” que conheceu a influenciarem na construção do filme.
Texto Nélia Pedrosa
Um “retrato subjetivo da serra de Serpa que acompanha os habitantes que resistem na zona e seus animais. Sem pressas, e ao ritmo do tempo cíclico do trabalho no campo e pela voz dos poetas populares, torna-se retrato dos que ficaram e réquiem aos que foram. Procura ter a simplicidade de ser e dá espaço para estarmos nele a conhecer aquela região através das paisagens, ou dos poemas, mas sem ter de explica-la”. É desta forma que a jovem realizadora Mónica Martins Nunes descreve o seu filme “Sortes”, uma produção luso-alemã com 39 minutos de duração, que teve estreia mundial no Festival Visions du Reél, na Suíça, em abril, e estreia nacional no festival de cinema Curtas Vila do Conde, que chegou ao fim no passado dia 25. No decorrer do Curtas teve ainda apresentações em Lisboa e no Porto.
O filme, uma homenagem póstuma ao avô materno da realizadora, António Silvestre Gregório Martins, poderá ser visto ‘online’ até ao próximo dia 5 de agosto no site do Curtas Vila do Conde.
O título, esclarece Mónica Martins Nunes ao “Diário do Alentejo”, refere-se “à história da partilha do baldio da serra de Serpa em glebas, parcelas de terreno que foram dadas à sorte aos habitantes da zona”, mas também “à sorte ou destino que lhes calhou”. “Com o abandono e a desertificação na serra, também pode ficar a pergunta: que sorte foi essa que receberam”, questiona.
A residir há nove anos em Berlim, onde trabalha atualmente com a artista palestiniana Jumana Manna e desenvolve trabalhos nas áreas de vídeo e da cerâmica, Mónica Martins Nunes diz que sempre sentiu uma “ligação muito forte” à serra de Serpa, de onde é natural a sua família materna, e que o seu avô sempre lhe “contou muitas histórias sobre a vida na serra, o trabalho no campo, a divisão do baldio, o contrabando, mas também lendas sobre princesas, animais falantes e adivinhas”.
“Contava histórias com muita arte e, além disso, gostava muito de cantar. Sempre que estava bem-disposto lá ia uma moda. De maneiras que fui crescendo com a serra mas através das suas histórias”, recorda. Inicialmente o plano era gravar o avô “e fazer uma recolha, mas, infelizmente, ele faleceu no início desse processo”.
E foi “nesse tempo de luto”, conta, que começou a gravar “no monte caído” do avô e deu início a “esse processo de reencontro com a serra”. A realizadora acabaria por incluir no filme gravações da voz do avô, que “nos conta a história da partilha do baldio da serra de Serpa em sortes ou nos fala de como a serra era dantes”. “Acho que estou à procura do meu avô na serra de Serpa, mas tenho outros encontros pelo caminho”, justifica.
VALORIZAR E PRESERVAR A POESIA POPULAR
Segundo a artista plástica, o filme “foi-se construindo à medida que foi feito”. Não era sua intenção “chegar com uma ideia e ilustrá-la por imagens”. Queria, sim, “dar o tempo para o lugar e as pessoas” que conheceu a influenciarem na construção do filme. “Como a equipa era só eu, durante as filmagens pude deixar-me levar pelo dia-a-dia dos habitantes da serra e gravar o que quer que estivesse a acontecer. O que eu queria era contaminar ou conjugar a minha visão idealizada do território, através das histórias do meu avô, com uma experiência atual da serra e a influência dos habitantes”.
“Só no final o filme passa a ter sentido, durante a montagem, visto que o material recolhido vai em direções múltiplas. É nesse momento que dou azo à minha subjetividade de recuperar o leme e definir o filme em si”, explica.
A poesia popular, “uma parte importante da criação artística local que deve ser reconhecida, valorizada, conservada e reatualizada”, como defende a realizadora, está muito presente em “Sortes”. Mónica Martins Nunes diz que o seu trabalho artístico, “apesar de ser noutro meio, a imagem em movimento, pode ser considerado uma continuação dessa tradição” e que “o ritmo da montagem do filme e as temáticas podem ser comparadas” às da poesia. “Sempre tive pena de não ter aprendido a contar histórias com o meu avô, com a mestria que ele tinha, e fazer este filme é para mim a forma atualizada de me inserir nessa tradição”.
No processo de procura de poetas populares, acabou por conheceu Eulálio Alves, “um poeta que faz décimas com grande mestria e talento sobre a sua vida, a política e até décimas que considero surrealistas”, e Francisco Bica, ou “Ti Chico dos Melões”, que recita, no filme, “duas vezes o seu poema original ‘Ai se eu fosse um cão!’, que tem um toque de humor e tanto da dureza da sua vida”.