Diário do Alentejo

Mónica Martins Nunes filma “retrato subjetivo” da serra de Serpa

05 de agosto 2021 - 12:05

“Sortes”, uma produção luso-alemã filmada na serra de Serpa por Mónica Martins Nunes, teve estreia mundial no Festival Visions du Reél, na Suíça, em abril, e estreia nacional no festival Curtas Vila do Conde, que chegou ao fim no passado dia 25. Segundo a realizadora, o filme “foi-se construindo à medida que foi feito”, porque não era sua intenção “chegar com uma ideia e ilustrá-la por imagens”. Queria, sim, “dar o tempo para o lugar e as pessoas” que conheceu a influenciarem na construção do filme.

 

Texto Nélia Pedrosa

 

Um “retrato subjetivo da serra de Serpa que acompanha os habitantes que resistem na zona e seus animais. Sem pressas, e ao ritmo do tempo cíclico do trabalho no campo e pela voz dos poetas populares, torna-se retrato dos que ficaram e réquiem aos que foram. Procura ter a simplicidade de ser e dá espaço para estarmos nele a conhecer aquela região através das paisagens, ou dos poemas, mas sem ter de explica-la”. É desta forma que a jovem realizadora Mónica Martins Nunes descreve o seu filme “Sortes”, uma produção luso-alemã com 39 minutos de duração, que teve estreia mundial no Festival Visions du Reél, na Suíça, em abril, e estreia nacional no festival de cinema Curtas Vila do Conde, que chegou ao fim no passado dia 25. No decorrer do Curtas teve ainda apresentações em Lisboa e no Porto. 

 

O filme, uma homenagem póstuma ao avô materno da realizadora, António Silvestre Gregório Martins, poderá ser visto ‘online’ até ao próximo dia 5 de agosto no site do Curtas Vila do Conde.

 

O título, esclarece Mónica Martins Nunes ao “Diário do Alentejo”, refere-se “à história da partilha do baldio da serra de Serpa em glebas, parcelas de terreno que foram dadas à sorte aos habitantes da zona”, mas também “à sorte ou destino que lhes calhou”. “Com o abandono e a desertificação na serra, também pode ficar a pergunta: que sorte foi essa que receberam”, questiona.

 

A residir há nove anos em Berlim, onde trabalha atualmente com a artista palestiniana Jumana Manna e desenvolve trabalhos nas áreas de vídeo e da cerâmica, Mónica Martins Nunes diz que sempre sentiu uma “ligação muito forte” à serra de Serpa, de onde é natural a sua família materna, e que o seu avô sempre lhe “contou muitas histórias sobre a vida na serra, o trabalho no campo, a divisão do baldio, o contrabando, mas também lendas sobre princesas, animais falantes e adivinhas”.

 

“Contava histórias com muita arte e, além disso, gostava muito de cantar. Sempre que estava bem-disposto lá ia uma moda. De maneiras que fui crescendo com a serra mas através das suas histórias”, recorda. Inicialmente o plano era gravar o avô “e fazer uma recolha, mas, infelizmente, ele faleceu no início desse processo”.

 

E foi “nesse tempo de luto”, conta, que começou a gravar “no monte caído” do avô e deu início a “esse processo de reencontro com a serra”. A realizadora acabaria por incluir no filme gravações da voz do avô, que “nos conta a história da partilha do baldio da serra de Serpa em sortes ou nos fala de como a serra era dantes”. “Acho que estou à procura do meu avô na serra de Serpa, mas tenho outros encontros pelo caminho”, justifica.

 

VALORIZAR E PRESERVAR A POESIA POPULAR

 

Segundo a artista plástica, o filme “foi-se construindo à medida que foi feito”. Não era sua intenção “chegar com uma ideia e ilustrá-la por imagens”. Queria, sim, “dar o tempo para o lugar e as pessoas” que conheceu a influenciarem na construção do filme. “Como a equipa era só eu, durante as filmagens pude deixar-me levar pelo dia-a-dia dos habitantes da serra e gravar o que quer que estivesse a acontecer. O que eu queria era contaminar ou conjugar a minha visão idealizada do território, através das histórias do meu avô, com uma experiência atual da serra e a influência dos habitantes”.

 

“Só no final o filme passa a ter sentido, durante a montagem, visto que o material recolhido vai em direções múltiplas. É nesse momento que dou azo à minha subjetividade de recuperar o leme e definir o filme em si”, explica.

 

A poesia popular, “uma parte importante da criação artística local que deve ser reconhecida, valorizada, conservada e reatualizada”, como defende a realizadora, está muito presente em “Sortes”. Mónica Martins Nunes diz que o seu trabalho artístico, “apesar de ser noutro meio, a imagem em movimento, pode ser considerado uma continuação dessa tradição” e que “o ritmo da montagem do filme e as temáticas podem ser comparadas” às da poesia. “Sempre tive pena de não ter aprendido a contar histórias com o meu avô, com a mestria que ele tinha, e fazer este filme é para mim a forma atualizada de me inserir nessa tradição”.

 

No processo de procura de poetas populares, acabou por conheceu Eulálio Alves, “um poeta que faz décimas com grande mestria e talento sobre a sua vida, a política e até décimas que considero surrealistas”, e Francisco Bica, ou “Ti Chico dos Melões”, que recita, no filme, “duas vezes o seu poema original ‘Ai se eu fosse um cão!’, que tem um toque de humor e tanto da dureza da sua vida”.

Em conjunto com a voz do seu avô, estes dois poetas “são o mais próximo de um narrador”, diz. O filme conta ainda com os contributos do casal Maria da Saúde e Duarte Parreira, “pessoas maravilhosas que me acolheram no seu monte, onde fiquei durante a maior parte das filmagens e a quem devo muito”. Para a jovem realizadora, Duarte Parreira “é uma figura que representa o homem da serra com uma forte ligação aos seus animais”. Maria da Saúde “é uma mulher de força, que tanto carrega fardos de palha como costura, e que logo se apropriou do filme também, juntando-se para as filmagens, dando opiniões e ajudando-me a entrar em contacto com outras pessoas de lá. Este filme, sem ela, seria outro”, assegura.

 

Neste “reencontro com a serra”, Mónica Martins Nunes admite que estava à espera “de encontrar mais histórias, mais fantasia, pois foi através delas” que contactou primeiro com aquele lugar. “Naturalmente, o meu avô era já de outra geração e hoje encontram-se menos marcas da tradição oral no dia-a-dia. Mas ainda existe”, sublinha, adiantando, contudo, que também se confrontou “com coisas novas” e que aprendeu “muito com as pessoas que lá moram”. Não só conhecimentos práticos ligados à agricultura, mas “também outras perspetivas”. Achou deveras interessante, por exemplo, “várias pessoas falaram muito do facto de saberem um pouco de tudo (fazer um furo para água, arranjar máquinas, tratar dos animais, construir um monte, fazer queijo, costurar) e demonstrarem um orgulho muito forte nisso”. O que, sublinha, “contrasta muito com a valorização que se dá hoje à especialização, saber muito de pouco”.

 

Um dos maiores desafios com que se deparou em todo o processo, e que considera “um pouco inesperado”, foi a desconfiança que a câmara de vídeo provocou nas pessoas. “Como estava habituada a ir a Serpa, a Santa Iria ou à serra visitar familiares enquanto crescia, estava à espera do acolhimento caloroso que conhecia. O que não contei foi que trazer uma câmara comigo mudasse tanto a dinâmica. Senti desconfiança em relação a mim e ao que andava lá a fazer. Mas, no final de contas, custou-me só mais tempo para voltar a ganhar essa confiança e depois de aceite fui acolhida lindamente e com uma enorme generosidade, que, pessoalmente, considero ser característica das pessoas desta zona”.

 

Mónica Martins Nunes espera voltar a filmar “brevemente” na região. Uma região com a qual tem “uma relação afetiva muito forte” e que considera “uma parte importante” da sua identidade, “por mais que more longe”. “Tenho saudades de estar na serra e das pessoas que lá conheci, ainda mais agora que, por causa da pandemia, tive de deixar de a visitar por uns tempos”.

 

E foi precisamente por causa da covid-19 que ainda não foi possível projetar “Sortes” em Vale do Poço (Fábricas), nos concelhos de Serpa/Mértola, como tinha inicialmente planeado. A realizadora revela que está à procura de uma “solução” que permita mostrar o filme “a todos os participantes de forma segura”, uma vez que é, para si, “a apresentação mais importante”.

 

FILME SOBRE A ILHA DO FOGO MARCA ESTREIA NOS DOCUMENTÁRIOS

 

Mónica Martins Nunes nasceu em 1990, em Lisboa, onde cresceu. Começou o seu trabalho artístico em cerâmica na Escola Secundária Artística António Arroio. Estudou Escultura na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. É ainda licenciada e mestre em Artes Plásticas pela UdK Berlim. “Na cinza fica o calor”, filmado na ilha do Fogo, em Cabo Verde, marca a sua estreia nos documentários. ”Chã das Caldeiras fica dentro da caldeira do vulcão Pico do Fogo. Depois de perder tudo o que possuíam na erupção de 2014/2015, os seus habitantes são forçados a reconstruir as suas vidas. Um conto visual sobre perda, uma relação simbiótica e um possível eterno retorno”, pode ler-se na sinopse.

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