Diário do Alentejo

Crónica de Virgílio Nogueiro Gomes: Sardinha, rica sardinha

23 de julho 2021 - 11:10

A sardinha faz parte do grupo de peixes teleósteos ‘abdominai’ e adquire o nome científico de ‘Sardina pilchardus’. Não pensem que vou continuar com esta linguagem ou com as definições técnicas deste maravilhoso peixe que nos identifica no mundo. A sardinha sempre foi associada a alimentação popular e recentemente assistimos à sua utilização por grandes chefes e para grandes mesas, quer dizer, alta gastronomia ou cozinha de autor.

 

Ninguém como os portugueses para se deliciarem com sardinhas assadas e colocadas sobre fatia de pão de mistura. Claro que instintivamente a tradição de comer sardinhas está associada à época em que o seu sabor é melhor. Por isso a sardinha transforma-se em emblema culinário das festas populares de junho. E lá diz o ditado: “No S. João a sardinha pinga no pão”. Claro que a sardinha é também o elemento culinário do Santo António. É de facto neste tempo que a sardinha está gorda, a sua pele liberta-se com facilidade e a sua gordura embebe o pão de forma gulosa.

 

Domingos Rodrigues (1680), autor do primeiro livro de receitas em Portugal, sugere os meses de novembro e dezembro, apesar de não dar nenhuma receita. Lucas Rigaud (1780) nem sequer menciona as sardinhas. Já João da Mata (1876) concede-lhe honras de três receitas: sardinhas à Mata, sardinhas em pastelinhos à portuguesa, e sardinhas em espiches.

 

Olleboma (1936), autor de “Culinária Portuguesa”, recomendava que a sardinha fosse consumida de junho a outubro pois eram os meses de melhor sabor e menciona que “a sardinha é o peixe mais abundante em toda a costa de Portugal… consome-se fresca, salgada e em conserva de azeite”. Como modos de confeção apresenta várias receitas de fritas, grelhadas ou assadas na brasa, recheadas e fritas com molho de tomate à moda de Setúbal.

 

Não vou continuar a relatar a presença da sardinha nos clássicos de receituários de culinária portuguesa. Devo, no entanto, referir a importância que a indústria conserveira teve durante o século XX.O sistema de conserva dos alimentos após cozedura e isolamento do ar foi descoberto por um cozinheiro francês de nome Appert, em 1804. Mas é em Inglaterra que se estabelece em 1810 a primeira indústria de conservas em folha-de-flandres, sendo o produto final muito caro pelo seu manuseamento.

 

Curioso é encontrar já uma receita de sardinhas no famoso livro, que eu traduzo diretamente do francês para “As delícias da mesa e os melhores tipos de comida”, de Ibn Razin Tujibi, escrito entre 1238 e 1266, e publicado no tempo da dinastias Almohade e Mérinide, no domínio de Al Andalus e do Maghreb. Isto porque a sardinha era considerada um peixe popular, ou menor.

 

Será fácil admitir que a sardinha já constava dos peixes que os romanos consumiam e que seria um dos elementos que entrava no famoso ‘garum’. Este seria uma pasta de peixe imaginada como sistema de conservação do peixe após a chegada dos barcos, e de cujo fabrico temos informações de Setúbal e Monte Gordo, condizentemente os locais onde se estabeleceram as primeiras indústrias de conserva.

 

Durante a Idade Média haveria até 240 dias de jejum de carne por ano, pelo que os frutos pesqueiros seriam a base da alimentação. A sardinha era primordial. Consta mesmo que no primeiro “restaurante” instalado na Praça da Ribeira, o “Mal Cozinhado”, se prestaria a fritar o peixe e servi-lo sobre fatias de pão.

 

A sardinha transformou-se num produto popular pelo seu preço, e vulgarizou-se, como a melhor forma de a saborear, assada na brasa. Durante o século XX teve picos de glória e de abandono, deixando de ser prato de mesas finas ou abastadas. Para o interior vinham em barricas com sal pois para as grandes tarefas agrícolas era necessário contratar galegos que não abdicavam de comer peixe. Outras formas, de conservação, levaram à criação de outro receituário como as empadas ou bolas de sardinha.

 

A importância popular da sardinha foi, e é, tão grande que a linguagem proverbial a adotou em vários sentidos: “Da garganta para baixo, tanto sabe a galinha como a sardinha”; “Na tua casa não tens sardinha e na alheia pedes galinha”; “Nem sempre galinha, nem sempre sardinha”; “A mulher e a sardinha querem-se pequenina”; “A mulher e a sardinha quanto maior mais danadinha”; “Não há comida abaixo da sardinha, nem burro abaixo de jumento”; “Se tens sardinha… não andes à cata de peru”; “Estar apertado como sardinha em lata”; “Comer sardinha e arrotar pescada”; “Tirar a sardinha com a mão do gato”. Para todas as ocasiões e para todos os sentidos.

 

A sardinha assada é, para mim, um elemento diferenciador da alimentação portuguesa. Os países mais próximos que consomem sardinha, como Espanha, França ou Itália, não o fazem como nós. E muito menos com o ato convivial de comer sardinhas assadas na brasa, em conjunto, à volta do assador. E com a simplicidade de o fazer à mão e sobre uma fatia de pão. Claro que estará sempre por perto uma boa salada com pimentos e um bom vinho.

 

Não resisto a lembrar o único sítio que comi sardinhas assadas e me fez lembrar, ou poder pensar que estava em Portugal. Em Essaouira, Marrocos, antiga praça portuguesa de Mogador, junto à lota, há uma espécie de restaurantes que se limitam a ser umas mesas corridas e apenas temos que escolher o peixe. Está incluído o pão, salada de tomate e refrigerantes (é um país muçulmano e há uma mesquita na proximidade). Escolhi três variedades de peixe e, a medo, apenas duas sardinhas. Chegado o peixe comecei pelas sardinhas e de imediato pedi mais seis. Voltei lá mais vezes só para comer sardinhas.

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