Diário do Alentejo

“O Cante nasceu no trabalho duro e na taberna”

22 de julho 2021 - 16:40

Com um novo disco pronto, mas cujo lançamento tem vindo a ser adiado devido á pandemia de covid-19, António Caixeiro é um dos músicos que participa no Festival BA, promovido pela Cimbal. Até final do mês de julho tem concertos marcados para Castro Verde (23), Moura (24), Serpa (29) e Alvito (30). Em agosto irá atuar em Almodôvar (dia 5) e em Barrancos (19).

 

Texto Rita Palma Nascimento

 

Começaste a cantar aos 13 anos, influenciado pelas tradicionais vivências e cantares dos homens nas tabernas de Cuba. Nesse palco, tão diferente de outros já pisados por cantadores, um pouco por todo o mundo, sente-se o Cante de forma diferente?

Claro que se sente. O Cante nasceu no campo, no trabalho duro de sol a sol e na taberna, após mais um dia de trabalho, num refrescar de garganta e de alma. E essa magia, que acontece sem hora nem dia marcado, ainda marca presença nos dias de hoje nas tabernas da Cuba, onde há lugar a enganos, ao esquecimento da letra e até do estilo (melodia) da moda cantada. Porque o Cante é dos homens, sejam eles analfabetos ou letrados, é dos operários e dos agricultores, de estudantes e dos doutores. O cante é do povo. Do povo alentejano, mas é, também, desde 2014, do mundo.

 

Rapidamente te assumiste solista, estatuto predominantemente atribuído aos mais velhos…

A minha escola foram os Ceifeiros de Cuba, um grupo de 1933, onde conheci os melhores cantadores alentejanos com quem já privei. São ídolos e é neles que nos revemos e é deles que queremos seguir pisadas. Quem ama aquilo em que se envolve quer sempre superar-se a cada etapa e quando entras num grupo coral como este, entras para ser parte de um leque de 20 homens que, na altura, faziam tremer o chão. Dou como exemplo a mestria com que Ermelindo Galinha cantava o ponto (solista), isso aguçava-me ainda mais o desejo de um dia poder ser eu a fazê-lo. Essa vontade, aliada à dedicação do mestre que me ensinava os preceitos de “cantar à alentejana”, ditou o meu caminho porque, creio, para se fazer um bom cantador não pode apenas existir a parte do aprendiz, mas também a vontade e disponibilidade daquele que o quer ensinar.

 

É tua a convicção de que pertence às gerações mais novas o papel preponderante da continuidade da tradição? Existe essa vontade?

Sim. Estou convicto que os mais novos são aqueles que podem e devem continuar este legado. Primeiro aprender a raiz, para que se seja capaz transmitir o sentimento e significado de cada moda. Depois, poder-se-á começar a inovar e a criar o novo, com base nas tradições, perpetuando-as. Se for respeitado o que nos foi deixado, a inovação será bem vista pelos que nos ouvem, caso contrário não, perde-se a essência do Cante.

 

Dos muitos projetos que integras, o Cante nas escolas tem um lugar especial. Fala-nos sobre a tua experiência e importância do projeto.

O Cante nas escolas entrou na minha vida em 2015. Comecei por dinamizar aulas em Beja, na Escola de Santa Maria e nas escolas de Beringel, Trigaches e São Matias. Foi um desafio e um misto de sentimentos de dever e de responsabilidade. Dever no sentido da transmissão de conhecimento e responsabilidade no ato de contextualizar tudo aquilo que se canta e ensina. Porque estas aulas são muito mais do que cantar, são o princípio da transmissão da cultura do nosso povo, das nossas gentes.

 

Sentes-te um exemplo de inspiração para os mais novos?

Com o passar dos anos comecei a sentir que era uma inspiração, e não só para os mais novos. O resultado das minhas horas de trabalho, de pesquisa, de intérprete, tem-me colocado mais perto das pessoas e quando vejo reconhecida a minha dedicação é sinal que consegui tocar que me ouve.

 

A tua carreira a solo teve início em 2018, momento a partir do qual te assumiste com novas sonoridades no panorama musical português. O EP contou com a produção e letras de Paulo Ribeiro, mas também de Paulo Abreu Lima. O que representa para ti, enquanto pessoa e artista, ter a oportunidade de, num primeiro trabalho em nome próprio, trabalhar com estes dois nomes?

Em 2018, após vários anos envolvido em projetos (que foram fazendo sentido, cada um em sua altura), como os Ceifeiros de Cuba, Cant’Aí, Moda Mãe, Mestre Cante, Adiafa, D’Empreitada, Bafos de Baco, decidi, com a experiência adquirida, mudar o rumo e criar coisas novas, com conhecimentos novos. Falei com o Paulo Ribeiro e com o Paulo Abreu Lima e convidei-os a escrever para mim. Em primeiro lugar é um orgulho imenso ter escritores deste nível a comporem para mim. Segundo, mais orgulhoso me sinto por ambos terem acreditado, desde o primeiro momento, neste projeto a solo.

 

Há um disco por lançar, inicialmente previsto para 2020 e adiado por força da pandemia. Qual é a previsão e o que podemos esperar do novo álbum de António Caixeiro?

Há um disco que estou ansioso em lançar e que a pandemia não tem deixado apresentar publicamente. Quero lançá-lo com gente em frente ao palco. Só assim faz sentido. Nós, os músicos, vivemos do calor do público, dos aplausos, da energia de quem assiste aos espetáculos, pelo que não faz sentido lançar um disco apenas pela via digital.

 

São tempos pardacentos, manifestamente marcados pela resiliência, resistência, crença e esperança no setor cultural. Que olhar é o de um artista, no teu caso em início de carreira, sobre o presente?

O setor cultural foi dos primeiros a parar e será, porventura, um dos últimos a retomar a sua dinâmica normal. É preocupante o estado em que o setor se encontra, mas, mesmo diante de notícias preocupantes temos que manter presente a crença de que o dia de amanhã será melhor que o de hoje. O foco é fazer música, compor, criar com continuidade, para que, quando possível, apresentar a todos aqueles que me acompanham. Os alentejanos são resilientes e saberão esperar por dias melhores.

 

És um dos artistas que integra o Festival BA, uma iniciativa promovida pela Cimbal e pelos 13 municípios que a integram. Que importância tem para ti esta oportunidade?

Esta oportunidade que a Cimbal me propôs assume extrema importância, porque me traz uma visão de esperança e futuro. É um gesto de humanidade. Pensar nos territórios, pensar nos músicos, atores, bailarinos, técnicos, produtores, enfim… em todos aqueles que têm passado por sérias dificuldades. Que seja o pontapé de saída para que os espetáculos voltem às ruas, largos e feiras do nosso Baixo Alentejo.

 

Uma vez itinerantes, os espetáculos percorrerão o Baixo Alentejo, permitindo-te cativar novos públicos. Como é que descreves o público alentejano?

Um dos pontos que mais me agradou foi poder fazer espetáculos em locais que não esperava. Estamos a falar de um leque de espetáculos em locais onde, por questões financeiras e logísticas, não seria possível a sua realização em circunstâncias normais. Pensar-se em aldeias e vilas, que não são sedes de concelho, mostra sensibilidade, até porque são esses meios mais rurais que muitas vezes me inspiram. É lá que recolho temas para trabalhar e apresentar.

 

São também objetivos deste festival a promoção, dinamização e desenvolvimento do património cultural, enquanto instrumento de diferenciação e competitividade dos territórios. Como é que a região, em teu entender, se poderia assumir mais competitiva, atrativa e diferenciadora, a nível cultural, numa perspetiva nacional?

A região torna-se mais atrativa e diferenciadora quanto mais genuínos e diferentes forem os nossos produtos. Valorizar o que é nosso, passar de boca em boca aquilo que fazemos, para que se ganhe projeção e consiga maior importância junto daqueles que nos governam. O Alentejo está, há muitos anos, na moda! Pelas praias, pela gastronomia, pelos vinhos e pela sua cultura. A música não é exceção! Apostar nos artistas locais é abrir-lhes caminho a novas oportunidades nacionais e/ou até internacionais. Valorizar cá dentro para que se consiga reconhecimento lá fora.

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