Texto Luís Miguel Ricardo
Mafalda Vasques tem 24 anos e é natural de Beja. Os primeiros passos no mundo da música começaram aos oito anos, no Coro Juvenil do Carmo. Dois anos depois, no contexto da celebração dos 90 anos das aparições de Fátima, foi convidada para interpretar a personagem de Jacinta, enquanto solista da oratória “Fátima Sinal de Esperança para a Humanidade”, da autoria do padre António Cartageno. Após este evento, transitou para o Coro do Carmo de Beja, uma transição que lhe aguçou mais o gosto pela música e a acicatou a aprofundar conhecimentos na área, passando a frequentar o Conservatório Regional do Baixo Alentejo (CRBA). Findo o secundário, ingressou na licenciatura de Enfermagem, no Instituto Politécnico de Beja, tendo, posteriormente trabalhado no hospital de São Paulo, em Serpa, e no Estabelecimento Prisional de Beja. Para além da profissão de enfermeira, que desempenha no Hospital dos Capuchos, em Lisboa, mantém-se ligada ao Coro do Carmo e “atracada” ao fado com a alma toda. “O fado surgiu na minha vida com cerca de 12 anos, na sequência do aniversário do meu avô João. Foi por ele que aprendi o primeiro fado e foi amor à primeira vista”.
Que momentos e trabalhos há a destacar no seu percurso artístico?
O trabalho onde percebi que a música me completava aconteceu em 2007, na oratória “Fátima Sinal de Esperança para a Humanidade”, enquanto solista, e que permitiu vivenciar uma mini ‘tour’ a nível nacional. Os tempos seguintes foram de descoberta, com a participação em concursos de fado, no Algarve. Destas experiências, aquilo que mais gostava era de conhecer novas pessoas, novas histórias, novos fados, novos poemas. De outros projetos, destaco, mais recentemente, a participação nas duas edições do Festival B, em conjunto com o Coro do Carmo e Rão Kyao, bem como a solo, enquanto fadista ou intérprete do espetáculo “100 Passos: 12 Canções de Amor”, da autoria do nosso querido amigo Paulo Abreu de Lima.
Como é constituído o reportório de Mafalda Vasques?
De momento, ainda não tenho música exclusivamente minha. Quanto às que interpreto, normalmente leio o poema que me proponho cantar e tento transpor a minha vida para a história que a música conta, para que me faça sentido cantá-la. Já dei voz a alguns temas inseridos em contextos de espetáculo temático, como foi os “100 Passos: 12 Canções de Amor” ou, por exemplo, dar voz ao poema “Quando uma guitarra se cala”, da autoria de Rita Palma Nascimento, dedicado ao seu avô Goinhas Palma, com música de João Nunes. Tenho também alguns poemas que me foram oferecidos, ou que li e quis ficar com eles, e a que tenciono brevemente dar cor. Se serei eu a compor a música… será outro desafio que gostaria de arriscar.
Ser alentejana e viver parte da vida no Alentejo representa uma fonte de inspiração ou uma fonte de limitações para a carreira artística?
Arrisco-me dizer ambas. Atualmente, por motivos profissionais, vivo em Lisboa, mas sempre que viajo até ao Alentejo sinto que é uma bênção ter nascido alentejana, ter crescido no Alentejo. Aos meus amigos, não alentejanos, costumo dizer que no Alentejo há tempo para respirar, e isso é tão importante! Relativamente às artes, à música, considero que temos muito bons artistas, cantores, vozes, intérpretes, e apesar de existir um reconhecimento regional incrível e familiar, sinto ser necessário “sair” para nos darmos a conhecer noutros palcos, e ver o reconhecimento do talento ganhar uma projeção nacional. Este “sair” marca a tua luta e persistência em mostrar que o Alentejo deve e tem de ser valorizado, pelas gentes que tem e pelo talento que carrega.
E como é “sair” para levar o fado para outras geografias?
Cantar em português é algo que me deixa feliz, mas ter o privilégio de poder levar um pouco do que é o povo português aos outros é gratificante. Já foram algumas as experiências que tive fora de Portugal continental: Açores, Cabo Verde, Luxemburgo e Polónia. É inexplicável o que se sente quando numa sala de espetáculos no estrangeiro, onde apenas quem entende o idioma é a fadista e os seus músicos/equipa, se vê, através de lágrimas, risos e olhares, a emoção que o fado transmite aos outros povos.
Alguns momentos inusitados vividos ao longo do percurso artístico?
A história da vida de cada um faz-se de outras pequenas histórias, e neste meu percurso é difícil mencionar todas, mas destaco uma que aconteceu na Polónia. Na viagem de ida, parámos em Frankfurt para escala, com pouquíssimo tempo para o fazer, perdemos o voo, o concerto foi adiado para a noite seguinte, e surgiu a preocupação pelos instrumentos e pertences pessoais, que seguiram “viagem” em voos diferentes. Os instrumentos foram recuperados, mas os bens pessoais não. Ou seja, na manhã do concerto, estávamos num mercado de rua polaco a comprar roupa para o espetáculo, a escolher as camisas e as calças, recorrendo à disponibilidade de uma costureira que ali estava para fazer, na hora, os ajustes necessários.
Que opinião sobre as novas vozes do fado, as oportunidades e os constrangimentos?
Há muito talento em Portugal e que aparecem cada vez mais vozes em idades precoces. Porém, afirmar uma carreira artística não é fácil, não basta teres talento, não basta seres bom cantor, existe todo um conjunto de fatores que poderão influenciar a carreira, porém, não é impossível, é necessário lutar, persistir e continuar a caminhada, arriscar em novos desafios, recuar, se necessário, mas não “parar” de caminhar.
Como tem sido vivido, pela enfermeira e pela artista, este período de pandemia?
Foi duro não ter por perto o conforto, o colo da minha mãe, do meu irmão ou dos meus amigos, mas hoje olho para trás e considero que sou, e espero continuar a ser, grata pelo dom da vida, pelas oportunidades, pelas pessoas que se cruzam comigo. Quanto à música, considero ser o encontro pessoal onde me permito ser frágil, onde dou voz às emoções que trago, à pessoa que sou e, no auge da pandemia, entrei a certa altura em “piloto automático”, entre casa e trabalho. Não tinha disposição para parar e, quando o fiz, percebi a importância desta arte na minha vida. Limitada a este nível, comecei a cantar enquanto prestava cuidados. Não só fados, mas um pouco de tudo, pequenas frações de uma música e tentava, nesses momentos, dar colo a mim também.
Que sonhos e ambições moram na alma da Mafalda Vasques?
Sou uma pessoa sonhadora e a quem dá “gozo” lutar, independentemente dos obstáculos que possam surgir, por aquilo que acredito que me faz feliz. Neste momento caminho com dois amores ao meu lado: a enfermagem e a música, mas, na verdade, quando “me sento à mesa” apenas com a Mafalda, sei que é na música que reside o grande amor, aquele pelo qual estás disposto a lutar sem certezas do que te trará e, nesse sentido, gostaria de me dedicar, no futuro, exclusivamente à música, se tal for possível, claro!