Diário do Alentejo

“Há uma diáspora riquíssima que é a maior reserva de ativos do Baixo Alentejo”

04 de junho 2021 - 17:00

António Vilhena é natural de Beja e, diz pertencente a “uma geração de bons rapazes”. Licenciado em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação é também mestre em Estudos Clássicos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas não esquece os tempos “do Liceu Diogo de Gouveia como espaço de encontro”, tempos que lhe “permitiram conhecer gente diferente e perceber que o conhecimento pode ajudar a abrir janelas e viajar”.

 

António Vilhena lembra, em particular, um professor primário que foi um “humanista inesquecível”, o professor Aiveca Acabado. “Sou devedor do que os meus professores me deram”. Colaborou com o “Diário do Alentejo” no início dos anos 80, guardando “o cheiro das máquinas, das rotativas, da composição e do ‘stress’ da redação”. Em 1984 parte para Coimbra “em busca da herança cultural da geração de 70”, tendo Antero de Quental como maior referência. “Uma cidade de poetas e cantores, de gente do mundo” que, tal como o autor bejense “levou e trouxe ideias novas”.

 

Presentemente, é curador da Casa da Escrita de Coimbra, poeta, cronista e autor de livros infantis. Neste campo é pioneiro na edição bilingue (português e inglês) para crianças, em território nacional. “Onde Está o Meu Abraço?” é o seu 14.º livro.

 

Como surgiu este livro?

 

O livro é sempre um ensaio de existência, um arco de respiração que liga o autor a um “tu”, que imaginamos ser alguém que quer ficar perto de nós. Este livro é esse desejo de nos perpetuarmos através de metáforas e palavras universais, onde os afetos e os pequenos gestos são a expressão do que de mais íntimo e perene resiste dentro de nós. Nasceu antes da pandemia, ao recordar os momentos em que ia buscar os meus filhos à escola, quando eles corriam para os meus braços e eu perguntava “onde está o meu abraço?”. É uma memória doce e ternurenta, uma reminiscência, talvez, de outros abraços que guardo no inconsciente.

 

É este abraço uma expressão do sentir mais artístico, enquanto autor, ou de maior proximidade humanística e pensada, enquanto psicólogo?

 

É um misto disso tudo, não nos podemos dividir. Somos indelevelmente o somatório de todas as circunstâncias que nos ajudaram a construir e a pensar o mundo. Desde a Antiguidade Clássica que o Homem procura a beleza que não morre na expressão artística, transforma os sentimentos em tragédias e eleva a esperança a uma condição divina. É através da palavra que melhor traduzimos a viagem dos afetos e, também, dos medos que vivem escondidos sob a pele. O sentimento de perda é assustador, ele é como o vento, invisível, mas percetível, toca-nos para que valorizemos os instantes e saibamos interpretar a essência do que amamos.

 

Classifica este livro como “livro para adultos, disfarçado de livro para crianças”. Quer explicar?

 

A narrativa está cheia de metáforas, desenvolve-se num imaginário infantil, onde os adultos se reveem quando mergulham no texto. Normalmente são os pais ou os avós que leem histórias aos mais novos. A educação de uma criança pressupõe, também, que os adultos saibam partilhar a fantasia que os ajuda a crescer. Os filhos e os netos são um reencontro com o passado, um regresso à primeira infância.

Porquê um livro bilingue?

 

Os meus livros infantis são todos bilingues (português e inglês). Quando comecei a escrever para os mais novos não havia em Portugal livros bilingues. Foi uma ideia diferenciadora e que tornava o livro mais universal. A prova disso é que este livro está neste momento em todos os cantos do mundo. Visito imensas escolas do país, sempre por causa dos livros. São os livros que me levam. Curiosamente, nunca visitei as escolas do Alentejo.

 

Como lidou com a realidade provocada pela pandemia no último ano?

 

Sou filho da planície, gosto de horizonte e de vento. A poética das paisagens do sul marcou-me, o andar e crescer na rua foi um conceito de uma geração que nada tem a ver com a dos meus filhos, onde existe uma proteção urbana que é o resultado da insegurança de uma certa modernidade. Por isso, estar confinado é sempre uma violência, porque é uma imposição que vem de fora, uma escolha dos outros, algo que não parte de nós. Durante a reclusão fiz o que já fazia antes: lia, escrevia e praticava exercício físico. “Mente sã em corpo são”. A situação de nos sentirmos um pássaro numa gaiola não nos permite abrir as asas e ensaiar belas melodias. O canto é um exercício de liberdade.

 

Sendo “filho da planície”, que memórias trás consigo e que lugar ocupa Beja na sua vida?

 

Guardo as melhores memórias. O Alentejo é a minha pátria, sinto-me emprestado a Coimbra. Não se trata de ser simpático, é uma verdade, é isso que sinto. O meu primeiro livro “Do Ventre da Terra” (1987) foi escrito em Beja durante a adolescência, embora tenha sido editado em Coimbra, com a presença do escritor Manuel da Fonseca e do poeta Martinho Marques. As linhas do horizonte são rios me circulam no sangue, é cultural, tal como o cante alentejano, os sabores da açorda, as papoilas, o vento suão ou a poética da paisagem. Toda a minha família ainda vive em Beja, por isso, regresso, também, porque estão aqui os abraços que amo.

 

E o “Diário do Alentejo”?

 

No princípio dos anos 80, João Honrado, um homem admirável, levou-me para o “Diário do Alentejo”, onde estavam João Paulo Velez, Pedro Ferro, Miguel Patrício, Miguel Tavares e José Moedas. Iniciei-me aí na escrita, senti o cheiro das máquinas, das rotativas, da composição e do ‘stress’ de uma redação. Lembro-me, ainda, do primeiro texto que escrevi. Eles foram muito meus amigos, aprendi imenso e guardo boas recordações. Eu era um jovem que não se enquadrava nos modelos vigentes e eles deram-me colo.

 

Quando olha para Beja e para o Baixo Alentejo, sem a projeção e valorização devidas, por contraste com Coimbra, o que sente?

 

Sinto que podia dar mais a esta cidade pessoal e politicamente. Há uma diáspora riquíssima que é a maior reserva de ativos desta região e que não é aproveitada. Existe um alentejano em cada canto do mundo, mas em Beja parece que não são necessários. A falta de influência junto do poder central tem sido o calcanhar de Aquiles, e, infelizmente, alguns políticos que têm desempenhado funções governativas fizeram muito pouco pela sua cidade. É preciso uma estratégia de desenvolvimento que fixe riqueza e pessoas, que valorize os recursos endógenos e que potencie a cultura. Ao longo dos anos temos conhecido alguns autarcas míopes que ninguém ouve no Terreiro do Paço, nem em lado nenhum. A visão paroquial da política sempre contribuiu para aumentar a solidão e as estatísticas depressivas. Os políticos deviam ser poetas, ao menos tinham um olhar cosmopolita e mais desprendido do poder.

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