Diário do Alentejo

Crónica de Virgílio Gomes: Comer (n)a literatura

20 de maio 2021 - 15:00

Pode dizer-se que a literatura também se come e que muitos, também, a devoram. Nesta crónica vou contar-vos como se pode comer, e deliciar-se a ler, alguns alimentos que entram na literatura. Os alimentos ajudam muitas vezes a fixar o tempo em que decorrem alguns episódios, mas também os sentimentos associados ao consumo de alguns alimentos. Irei centrar-me em dois autores e num precioso alimento: o pastel de nata. Este doce é seguramente o mais internacional da nossa doçaria, cuja ancestralidade está patente em muitos relatos.

 

Inês Pedrosa, no seu livro “Dento de Ti Ver o Mar” (2012), a sua personagem Rosa é uma fã de pastéis de nata. Mas tem outros apetites e mais citações em relação a alimentos ou circunstâncias de uma refeição. Logo no início sobre Rosa a autora escreve: “A quantidade de coisas que uma pessoa pode pensar de prato na mão, na fila de um ‘buffet’”. Na descrição de Gabriel, na complexa relação com Rosa, escreve que esta “sentava-se a lanchar com ele no café da livraria e sentia-se cada vez mais enternecido com o tempo que ela levava a saborear, pedacinho a pedacinho, o pastel de nata que às vezes se permitia comer”.

 

A autora continua: “Mal a via atravessar a rua, Gabriel fazia um sumo de laranja e tirava um pastel de nata. Rosa dizia que não podia pecar tantas vezes, sob pena de nunca mais se livrar dos quilos em excesso. Sorria-lhe, lançava um piropo, dizia-lhe que ainda tinha uma margem de pastéis imensa até ficar gorda, e que a delícia de a observar a comer aquele doce era imperdível. Dizia-lhe que chegava a ter ciúmes do pastel de nata …”.

 

Mas a relação de Rosa com os doces não acaba aqui. Do Rio de Janeiro envia a Gabriel um email: “O Rio de Janeiro é sensualidade pura. A luz desta cidade não tem igual – e a beleza das baías é de entontecer… Podes até não gostar do Brasil, mas o Rio é irresistível. Gostaria de to mostrar. Hoje, ao chegar ao quarto, encontrei um ramo de rosas (simpatia do meu recém-descoberto progenitor) e pãezinhos de queijo com doce de leite (simpatia do meu agente, sabe que eu adoro estes pãezinhos – ou melhor, adoro doce de leite)”. E não transcrevo mais pois espero que vos tenha aberto o apetite para ler este livro e também comer pastéis de nata.

 

Confesso que sou um leitor continuado de Inês Pedrosa, de quem sou amigo, e que me incentivou a escrever e publicar. Por isso convidei-a a escrever o prefácio do meu primeiro livro “Transmontanices” (2010). A presença de alimentos na obra de Inês Pedrosa é tão importante que apetece escrever como a autora utiliza a alimentação na sua obra.

 

Em 2006, Eduardo Prado Coelho, no invulgar livro “Nacional e Transmissível”, onde aborda detalhes da identidade portuguesa, tem um capítulo dedicado aos “Pastéis de Nata”. Começa assim: “Tenho um problema, gosto muito de pastéis de nata, mas não sei se consigo escreveu três páginas sobre este tema”. E começa por dar uma receita em prosa que quase parece poesia. “Depois vem aquele momento mais enternecedor de todas as receitas: leve ao lume brando até cozer. Eu gosto que os pastéis fiquem bem dourados. Estaladiços, claro. A opção final é por canela e polvilhar com açúcar. Um pequeno requinte”. E continua com descrições quase emotivas: “O que sempre me seduziu é que a imagem dos pastéis de nata, de preferência uma excelente fotografia a cores (uma vez que o austero preto e branco aqui não funciona), já sabe tão bem como os próprios pastéis. De certo modo, o sabor antecipa-se na representação, e o resto às vezes nem está à altura. O folhado estala entre os dedos, e sentes na sobreposição dos ingredientes a duplicidade infinita da matéria do mundo, a matéria na sua fragilidade ilimitada, pronta a transbordar para os dedos trémulos, e as dimensões infinitas do psiquismo humano: o que se pode imaginar de prazer a partir da imagem de um pastel de nata”.

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