Diário do Alentejo

“Acredito que exprimimos melhor aquilo que sentimos e vivenciámos”

19 de maio 2021 - 12:20

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Mercedes Guerreiro nasceu na vila de Aljustrel, no ano de 1961. Três anos depois, emigra com os pais para a Bélgica. É por lá que se faz mulher; é por lá que se licencia em Jornalismo e Comunicação Social, na Universidade Livre de Bruxelas; é por lá que começa a exercer a profissão de jornalista; é por lá que se torna cofundadora da Rádio Tentativa, a primeira rádio portuguesa da Bélgica; e é por lá que há de permanecer até meados da década de 80, mais concretamente até ao ano de 1987, altura em que a saudade a devolve a Portugal, trazendo-a para Lisboa, onde fica a trabalhar como jornalista/tradutora.

 

Mais tarde, vira-se para a comunicação, desempenhando funções como ‘senior account’, na agência internacional de comunicação CNEP/Hill and Knowlton; e criando os gabinetes de comunicação da Assistência Médica Internacional (AMI) e da Câmara de Aljustrel, tendo, nesta segunda entidade, trabalhado por vários anos, até se deixar desassossegar por um novo desafio, por uma nova experiência profissional, que a faz rumar de novo a Lisboa, para coordenar o gabinete de comunicação e relações públicas da Biblioteca Nacional de Portugal.

 

No universo das artes, gosta de se expressar através da fotografia e das artes plásticas, tendo já participado, como autodidata, em algumas exposições coletivas de pintura; e da literatura, valência onde tem vários trabalhos publicados, com destaque para as obras “O Triunfo dos Valentes - Luta e Resistência numa vila mineira do século XX”, romance publicado em 2019; “Grândola Vila Morena - Le Roman d’une chanson”, publicado em coautoria com Jean Lemaître, em 2014 e reeditado cinco anos depois; “Grândola Vila Morena – A Canção da Liberdade”, em 2014; “Contos Assesta – Água”, publicado em coautoria com vários autores da Associação dos Escritores do Alentejo (Assesta), cujos órgãos sociais integra.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

 

Tive a sorte de ter tido professores que despertaram em mim o gosto pela leitura e pela escrita. Além disso, sempre vi o meu pai a ler jornais e discutia muito com ele sobre política e assuntos internacionais. Assim nasceu o meu interesse para as letras e para o jornalismo. Devido à minha profissão, tenho escrito sobre muitos assuntos e sobre muitas pessoas, mas só há meia dúzia de anos me aventurei a publicar o primeiro livro.

 

Dos vários registos literários, algum que seja o de eleição?

 

Talvez, devido à minha formação profissional, tenha privilegiado o romance e o conto inspirados em factos reais. A certa altura, senti que tinha um dever de memória e de chamar a atenção dos leitores para assuntos relacionados com a nossa história.

 

Olhar o Alentejo de fora, enquanto emigrante, e depois cá de dentro, dá uma visão mais ampla da região enquanto fonte de inspiração literária?

 

O Alentejo tem estado sempre presente nas minhas publicações. Acredito que exprimimos melhor aquilo que sentimos e vivenciámos. O facto de ter vivido no Alentejo e longe dele trouxe-me uma visão talvez mais alargada daquilo que lhe é intrínseco. Às vezes necessitamos de nos afastar para ver e alcançar melhor o que deixamos para trás. Tem sido uma grande fonte de inspiração. Além disso, para mim, o Alentejo é poesia.

 

De todos os trabalhos desenvolvidos, alguns que tenham sido mais marcantes?

 

O “Grândola Vila Morena” foi marcante por ter sido o primeiro, e por ter permitido, através da história da canção e do seu simbolismo, despertar o interesse de jornalistas estrangeiros sobre as severas medidas de austeridade impostas pelo Governo português, numa altura em que a imprensa internacional nada dizia sobre a nossa situação. Recordo que no dia 2 de março de 2013 mais de um milhão de portugueses saíram à rua em protesto e, na imprensa estrangeira, nem uma única palavra! Contudo, “O Triunfo dos Valentes” marcou-me muito mais por ter uma carga emocional bastante forte. Baseado em factos reais, aborda a dureza da vida, durante a ditadura, numa vila mineira onde a fome, a provação e a repressão imperavam. Fiquei emocionada com a reação das pessoas que vieram ter comigo para acrescentar as suas histórias a esta história que é de todos nós e que não pode ser esquecida. Estou grata a essas pessoas.

 

Quer recordar alguns momentos especiais vividos ao longo da carreira?

 

Conforme disse, estes livros proporcionaram-me grandes momentos de partilha que me permitiram descobrir outras histórias e outras realidades. Recordo-me de uma senhora que me contou que ela, também aos 6 anos, fugiu para França “a salto” com a mãe, levando só a roupa que tinham no corpo. Mas também fiquei comovida quando uma jovem, que ia festejar os seus 15 anos, pediu aos pais o meu livro como única prenda. Senti-me honrada e pensei que o mundo não estava perdido. Ainda havia esperança. Além disso, partilhei momentos memoráveis com as pessoas que se cruzaram comigo, e fiz algumas amizades, nomeadamente através da Assesta – Associação dos Escritores do Alentejo.

 

As novas tecnologias são uma mais-valia ou uma concorrência para a literatura?

 

Com o aparecimento das novas tecnologias, as pessoas leem e escrevem muito mais. Não penso que seja tanto uma concorrência, mas sim um complemento, outra forma de dar a conhecer novos talentos, muitas vezes recusados pelas grandes editoras que preferem apostar em nomes conhecidos, mais rentáveis. Mas quantidade nem sempre é sinónimo de qualidade. O futuro da literatura dependerá da sua capacidade de adaptação às novas tecnologias, em ser diferenciadora e não se deixar nivelar por baixo, continuando a despertar o interesse dos leitores.

 

Qual a sua opinião sobre o atual estado do universo literário em Portugal?

 

Vivemos num país pequeno, com poucos leitores. O mundo da edição está nas mãos de meia dúzia de grandes editoras que procuram o lucro e dão preferência aos autores de renome internacional e nacional; ou aos mais mediáticos. Raramente apostam em autores desconhecidos, que têm de recorrer aos pequenos editores, com muitas dificuldades financeiras e pouca capacidade para a promoção dos livros, ou então virar-se para a edição de autor. A solução poderá também passar pela capacidade dos escritores, como fazem e bem os membros da Assesta, de organizarem encontros, sessões de leitura, tertúlias literárias para darem a conhecer as suas obras ao público. Felizmente, têm aparecido novos escritores e a literatura portuguesa está a ser cada vez mais apreciada e traduzida noutros países. Mas, a atual situação pandémica veio agudizar os problemas financeiros deste setor. Veremos como irá evoluir!

 

Como tem sido vivido este período de “stand by” no mundo?

 

Tenho aproveitado este período de confinamento, que passo entre Aljustrel e Lisboa, para refletir e amadurecer ideias e projetos. Espero poder levá-los a cabo logo que possível.

 

Alguma revelação?

 

Comecei a trabalhar numa nova obra que se passa também no Alentejo.

Comentários