Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Scnhitzer: A verdadeira espiritualidade

06 de maio 2021 - 10:45

“Há mais razões no teu corpo que na tua melhor sabedoria” (Nietzsche).

 

O caminho que nos conduz ao divino é fundamentalmente um exercício interior que implica a renuncia dos sentidos corporais, ou serão os sentidos corporais que medeiam o contacto com o divino? Uma das figuras máximas do pietismo no século XVIII propunha: “Fecha a porta dos teus sentidos e procura Deus no profundo”. A sua proposta representa aquilo que podemos apelidar de “mística da alma”. Esta lógica vai ao encontro da poética platoniana, que considera que o caminho que nos conduz a Deus é um exercício que implica um desligar dos sentidos corporais. Segundo esta via, existe uma separação entre alma e corpo, em que a alma é a ‘res cogitans’ de natureza espiritual – o pensamento e o corpo a ‘res-extensa’. Ou seja, traduzindo por miúdos, aquilo que é do espírito situa-se num campo superior àquilo que se vive no mundo dos sentidos. O primeiro é encarado como superior e profundo, enquanto o segundo é supérfluo e frívolo. O que me leva a questionar: será que existe mesmo uma separação entre corpo e alma? Então, mas Deus não formou o homem através do barro: da fragilidade do barro, do húmus?

 

Deus sopra seu próprio espírito que nos vivifica. Corpo e espírito: obra-prima de Deus! O que é este sopro vital? Não é nada mais, nada menos, do que o espírito de Deus que passa a estar vivo em cada um de nós, codificado nos cinco sentidos e manifestações da pessoa humana.

 

De acordo com o eremita Antonella Lumini, a separação da alma e do corpo é estranha à tradição bíblica, na qual o ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus: “o corpo não é uma película externa do espírito ou uma prisão da alma, como pretende o platonismo e muito das suas réplicas”. Nos seus “Exercícios Espirituais”, Santo Inácio de Loyola explicava: “não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas sim sentir e saborear internamente todas as coisas”. Isto significa, que entramos numa viagem interior, mas partindo dos cinco sentidos, dos sentimentos que investimos na vida e dos afetos que desenvolvemos. Só assim a experiência de Deus se pode tornar numa experiência mobilizadora.

 

E quando é que saboreamos? Quando detemos o mero exercício de devoração do mundo; quando se introduz uma lentidão interior; quando contemplamos com as papilas gustativas; quando o nosso corpo contempla; quando, todo concentrado, ele observa, surpreende-se, avizinha, entreabre o segredo, deixa essa espécie de epifania revelar-se. “O sabor é uma forma de intimidade que supõe o contacto profundo”, diz José Tolentino Mendonça. O sabor não é uma coisa que possuímos externamente; requer uma arte de ser, uma coisa em que nos tornamos.

 

Experimente o leitor um bom copo de vinho. Para além de aquietar a mente, proporciona um abrandamento interno e provoca o despertar dos sentidos. Através da visão, do tato, do odor e do paladar, mergulhamos num universo cósmico de aromas e sabores, de texturas inusitadas em simultâneo, permite-nos descobrir a história engarrafada que foi atesourada com o valor do tempo.

 

Na arte da degustação lenta, deixamos que as lágrimas vertidas no nosso copo se apoderem dos nossos sentidos e escorreguem na garganta como a mais fina gota de orvalho que lacrimeja e tempera os espíritos, proporcionando uma incrível viagem de descoberta interior. E, o vinho significando o mais puro milagre da criação, assenta na aliança inquebrantável entre o espírito divino e vitalidade terrestre.

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