Clássico da literatura universal, as “Cartas Portuguesas”, de Mariana Alcoforado (1640-1723), freira no convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja, merecem uma nova edição em Espanha, com responsabilidade científica do historiador e museólogo José António Falcão. Editado pela La Umbría y la Solana, casa madrilena que que traz entre os seus pilares editoriais o de dar a conhecer a literatura portuguesa, o livro é um contributo para a internacionalização de uma obra singular.
“Cartas Portuguesas”, cuja tradução para o castelhano foi entregue a Maria Jesús Fernández, tem como epicentro Beja, cidade que guarda quase intacta a presença de Mariana Alcoforado: a casa onde nasceu, a quinta onde habitou, a igreja onde foi batizada, o convento onde professou e onde conheceu Chamilly, militar francês que veio participar na fase final da Guerra da Aclamação.
A obra une a vertente literária à leitura histórica e contribui para a internacionalização deste património, imaterial e material, junto do público de língua castelhana. Não só em Espanha, mas também no México, na Colômbia, no Chile, no Peru, para citar alguns países de referência do idioma de Cervantes, existe grande interesse pelas “Cartas Portuguesas”.
“Mariana foi vista, já no tempo em que viveu, quando o seu vulto era ainda bastante impreciso para a maioria dos leitores, como um símbolo maior do ‘amor-paixão’, fulcro de um tema literário de repercussão internacional”, sublinha José António Falcão. “Dir-se-ia que, nas últimas décadas, a vaga da paixão que rodeia as ‘Cartas Portuguesas’ não só continuou, como não parou de crescer. Há cada vez mais leitores desta obra, o que não surpreende. Estamos a falar de uma das grandes histórias de amor, mas um amor revolucionário, que escapa aos lugares-comuns e se revela muito atual”.
Segundo o historiador, “Mariana é, em larga medida, uma contemporânea nossa. Arguta, corajosa, inteligente, sensível, enfrentou corajosamente as convenções do seu tempo, elevando o amor a um patamar superlativo, existencial, sem o qual a vida carece de sentido. Mas, ao mesmo tempo, lúcida como era, compreendeu e aceitou as limitações desse amor. É uma lição de vida impressionante, que ainda hoje arrepia”.
José António Falcão revela que, a princípio, duvidou da “consistência histórica da narrativa” que atribui a autoria das cartas a Mariana Alcoforado, achando-a uma “excecional ficção literária, que usava Portugal e Beja como mero cenário”. No entanto, ao aprofundar esta hipótese, a sua opinião mudou: “Apercebi-me de uma Mariana de carne e osso, capaz de falar e ler em francês, em interação com um Chamilly perfeitamente inserido no Alentejo de 1664-1667”.
Diretor da editora La Umbría y la Solana, Feliciano Novoa diz que a oportunidade desta edição surgiu quando José António Falcão referiu a existência de uma nova tradução que havia empreendido diretamente do original francês e do decorrente estudo que efetuou em torno do texto. “O resultado é um estudo e uma tradução definitivos, quer para quem já tenha lido as Cartas Portuguesas, quer para quem as lê pela primeira vez”.
No catálogo da La Umbria y la Solana convivem autores contemporâneos, como Lídia Jorge, João de Melo, Carlos Reis, José Saramago, Almeida Faria, Dulce Maria Cardoso, Mário Cláudio, José Luís Peixoto, Ruy Lage e clássicos como Antero de Quental, Fernando Pessoa, Almada Negreiros ou Eça de Queirós.
As “Cartas Portuguesas” são “um texto incomum, particular em muitos aspetos, não só pelo mistério que envolveu a questão autoral ao longo de séculos, mas sobretudo pela profundidade com que é tratada a psique feminina após uma experiência de abandono e intensa crise emocional”, sublinha María Jesús Fernández, professora de Língua e Literatura Portuguesas na Universidade de Extremadura, especialista em literatura portuguesa contemporânea e tradutora da obra para castelhano. “Se ao lermos as cartas, ouvimos esta voz que se lamenta e tortura como espectadores curiosos de uma confissão íntima, quando estamos a traduzir sentimos que somos obrigados a construir essa voz com palavras exatas e sinceras, que mantenham inteiros o desespero e a veemência daquele monólogo apaixonado”, acrescenta.