Diário do Alentejo

Conto de António Manuel Revez: “O regresso”

09 de abril 2021 - 17:15

Texto António Manuel Revez

Ilustração Susa Monteiro

 

A noite estacionou na varanda onde o sol nunca aparece. O som metálico da oficina da esquina deu lugar às discussões competitivas das famílias pela programação televisiva. É noite de futebol. Mas também é noite do último episódio da telenovela. João fuma um cigarro de enrolar à varanda. O avô Virgílio seleciona as luzes de que avião seguir, à varanda. A noite estava igual às outras noites, indiferente a uma despedida que, como a varanda, também não se importava com isso. Talvez o vizinho do andar de baixo desejasse boa viagem, se soubesse. Talvez o camião do lixo buzinasse uma música, se soubesse. João olhou pela última vez para a esplanada do café onde conheceu quem lhe destroçou o coração. O avô olhou pela última vez para o jardim onde agora existe uma bomba de gasolina. João aninhou a ponta do cigarro entre o polegar e o dedo médio e atirou-a ao espaço como quem projeta um berlinde sem direção definida. Riu-se da leviandade. O avô rodou a aliança de casamento e procurou nas estrelas o sorriso de quem sorriu ao enfiá-la no dedo. Suspirou por nada ver. Nem estrelas.

 

- João, a que horas é o comboio?

 

- Já vejo avô.

 

- E onde apanhamos o barco para o Barreiro?

 

- O quê?

 

- Sim, o comboio não parte do Barreiro?

 

- Não avô. Parte da Estação do Oriente.

 

- E depois como vamos de Beja para Baleizão?

 

- De autocarro. Não te preocupes.

 

O João ajudou o avô a encher as malas. O João e o avô faziam anos com dois dias de diferença. João fez trinta, o avô Virgílio fez oitenta e dois. A última noite parecia não ter nenhum dos significados que obrigam a cerimónia. Tinha o significado de ser a última e isso sufocava as palavras e convocava o silêncio. Cada um saberia fazer as contas à memória, do seu jeito. Dois bancos apenas na solidão da cozinha onde o João desembrulhou o frango assado já partidinho aos bocados. Metade sem piripiri para o avô.

 

- Podias ter-me feito uma açorda.

 

- Pois podia avô, mas sem o pão de lá sabes como é que é.

 

- Sei.

 

Duas maçãs apenas para a sobremesa. Dois cadeirões apenas na sala.

 

- Podias ter comprado vinho de Pias, ou da Vidigueira.

 

- Pois podia, tens razão. Mas já falta pouco. Bebemos depois.

 

- Sim.

 

João estava sem trabalho há um ano. O avô estava triste há vinte anos. O desemprego do João e a tristeza do avô tinham decidido voltar à velha casa em Baleizão. O subsídio de desemprego do João e a reforma do avô tinham concordado voltar onde o João tinha brincado na infância e onde o avô não era triste.

 

Duas malas apenas.

 

- Podíamos já ter abalado há mais tempo.

 

- Pois podíamos avô, mas ainda vamos a tempo.

 

- Vamos.

 

O despertador não acordou ninguém. João já aguardava na sala o avô, depois de ter escrito um bilhete ao senhorio a desculpar-se da sanita rachada por motivo desconhecido e dos restos de fita-cola que não conseguiu tirar das paredes quando atirou para o lixo os posters dos Xutos. O avô não pregou olho, teve medo de não ouvir o despertador. Teve medo de já não acordar. Teve medo de morrer naquele recinto com grades nas janelas. Teve medo de sonhar com isso e ser verdade.

 

- Este comboio é um luxo, não treme nem nada.

 

- Sim avô, é dos modernos.

 

- Mal se ouve. No meu tempo era uma barulheira infernal.

 

O avô ficou no lugar da janela, mas tudo passava rápido demais, indistinto e confuso. Confuso como era tudo ali, disforme, nebuloso, desfocado. Rápido como rajadas de metralhadora, tiros disparados das bocas, passos acelerados, olhares furtivos, cheiros a gasolina, cores misturadas. Em Casa Branca obrigaram o avô e o João a mudarem-se para uma espécie de comboio, velho, doente e rouco. Vagaroso. Uma eternidade depois, quando no altifalante se anunciou a chegada a Cuba e o comboio abrandou dolentemente amortecido pelo sol que inundava a carruagem, o avô Virgílio emudeceu e comprimiu-se tanto por dentro que a emoção se derramou pela face abaixo e os lábios secos lamberam todas as lágrimas que tinha guardado sem saber. João viu o avô a esconder-se da sua vulnerabilidade e pensou dizer uma parvoíce qualquer para alegrá-lo, mas um impulso de comoção solidarizou-se com o avô e também se encolheu por detrás dos óculos de sol embaciados.

 

O comboio, depois, foi indo manso até Beja, arfando, degustando a mistura de vinhas, olivais e amendoais. E com o avistamento do castelo, novo sobressalto se apossou dos dois, desdramatizado com a cantoria brasileira dos estudantes que ocupavam os restantes assentos.

 

- Vamos de táxi até à gare.

 

- Não João, quero ir a pé. Quero passar pelo jardim público.

 

- É a subir avô, e as malas são pesadas.

 

- Ah, as malas. Então vamos de táxi até ao jardim, depois já é perto

 

O avô escolheu o banco onde iriam comer as sandes de ovo mexido e restos do frango.

 

- Foi neste banco que pedi a tua avó em casamento, num domingo em que viemos passear a Beja. Falta aqui uma árvore, mas o banco é este. Nessa árvore escrevi o meu nome mais o dela com um canivete. O nome dos dois era das poucas coisas que sabia escrever. Não me puseram a andar à escola. Pedi ao meu irmão mais novo para me ensinar a escrever o seu nome. Deu-me uma folha com o nome dela escrito e copiei mais de um cento de vezes até ficar parecido.

 

- E a avó aceitou logo?

 

- Não. Disse que não tínhamos dinheiro para casamentos, e que não queria casar com uma roupa qualquer, queria um vestido de noiva como devia ser.

 

- E o que é que fizeste?

 

- Disse que havia de ir vestida como ela queria. Vendi a bicicleta a pedal que eu levava para o trabalho, e vendi três ovelhas do rebanho que o meu pai guardava. Tive de inventar a desculpa de que andavam uns cães a matar ovelhas por lá. E foi assim que arranjei dinheiro para o vestido de noiva. A tua avó garreou comigo, mas lá aceitou.

 

O horário dos autocarros para Baleizão mudou. João protestou com o senhor da bilheteira, alegando que tinha visto o horário na Internet. Mas mudou. Mudam mas não atualizam. Só havia agora um autocarro à tarde, que é o que leva a moçada da escola.

 

Já chegaram ao entardecer a Baleizão e à casa térrea onde o João tinha aprendido o nome de todos os pássaros e o avô tinha cantado a felicidade junto à lareira. Onde a vida se aconchegava nos silêncios de amor e nos abraços repetidos. A casa era a morada dos sonhos que coloriam as noites frias. Naquela casa as mortes despediam-se das paredes para dançarem nas recordações do que foi feito com importância.

 

- Está tudo igual, avô. A tia Augusta tem cuidado bem da casa.

 

- Tudo igual… Até parece que ganhei outra vida. Obrigado João.

 

Nessa noite houve baile na aldeia, e não era de acordeão nem de gira-discos. Nessa noite houve vizinhos de todas as idades a baterem à porta para saberem coisas e trazerem novidades e oferecerem ovos e o jantar. Nessa noite o rafeiro que ocupava o poial ganhou dormida junto ao lume. Nessa noite dois gatos vadios saborearam as espinhas do bacalhau cozido com grão, e aninharam-se no quintal de barriguinha cheia. Nessa noite o avô Virgílio dormiu na sua cama de casado e deitou-se com todas as memórias que vieram em romaria para o fazer rir e chorar ao mesmo tempo. Nessa noite o João fez projetos e planos, para si, para a aldeia, para a região, embriagado de esperança e ambição. Nessa noite houve garrafão de vinho caseiro.

 

O dia fez-se anunciar pelo sino e pelo grito das andorinhas. O avô Virgílio engoliu todo o ar da manhã e cumprimentou o sol com um cigarro. Jovens desfilavam tratores modernos no horizonte. Velhos apressavam-se para irem medir a diabetes. Mulheres faladoras entravam para o curso de jardinagem. Há poucas crianças, com palavras estrangeiras. João foi vaguear pelas ruas já desertas a meio da manhã, depois de cumprimentar a estátua da Catarina Eufémia. Parecia ele sozinho e o mundo. Foi à Junta ver se havia trabalho, como se a Junta fosse o Centro de Emprego. A Junta não é o Centro de Emprego, mas indicaram-lhe alguns agricultores espanhóis que estavam a contratar romenos e indianos para tratar daquelas oliveiras da C.E.E. João já não tem memória da C.E.E., mas a sigla soou-lhe familiar. João olhou para si e viu que não era romeno nem indiano. A prima Vanda era quase da idade do João. Estava gorda e feia. Tinha um filho gordo e feio que jogava no computador e grunhia a cada murro e pontapé que dava na bonecada.

 

- Isto está difícil primo. Eu vivo do rendimento mínimo e da ajuda do pai do Wilson.

 

- Wilson?

 

- Sim, o pai é brasileiro. Quis que fosse Wilson. Não me importei. A outra hipótese era Gerson.

 

- Podia dar explicações. Explicações de português. O que é que achas? Há aqui tantos imigrantes.

 

- Ó homem, ganha juízo! Esses desgraçados recebem uma miséria, mal dá para comerem.

 

João passou pela mercearia para comprar pão da véspera e vinho da Vidigueira. E alho, e azeite. E coentros, já se esquecia. Ovos havia.

 

- Que bela açorda, João. Obrigado.

 

- Não bebas muito, olha os comprimidos.

 

- À tarde vou à campa da tua avó. Acho que está arranjada. E a irmã costuma ir lá pôr umas flores de vez em quando. É o que ela diz.

 

- À tarde vou a Beja de boleia com o Januário. Ele diz que é capaz de haver trabalho numa obra.

 

- Numa obra? Mas tu não és socioló…socialó…

 

- Sociólogo.

 

- Sim.

 

- Sou licenciado em Sociologia avô. Sabes que nunca trabalhei na minha área.

 

- Sim, mas tens estudos.

 

- Até logo… e o que queres jantar?

 

- Eu faço uma torrada, João. Fico bem assim.

 

João não era romeno, nem indiano. Mas também não era cabo-verdiano, nem ucraniano, e o dono da obra não simpatizava com os descontos para a Segurança-Social. Nos hipermercados também não estavam a aceitar ninguém. A cidade estava indisposta e o ar tresandava a odor nauseabundo do bagaço vindo dos lagares. Se calhar era por isso. O amigo Januário, condoído, perguntou ao João se ele já tinha experimentado os cursos. Era para onde toda a gente ia quando estava desempregada.

 

- Esta formação dura cerca de três meses e recebe o subsídio de refeição, cento e poucos euros. Ah, e também lhe pagamos o passe, para vir de Baleizão. Mas só pode caso não esteja a receber outros apoios do Estado, claro.

 

- Ok, obrigado.

No regresso a Baleizão, o Januário contou anedotas e fez piadas sobre a atualidade futebolística. E mostrou no telemóvel fotos de uma mulher casada que conheceu pelo Facebook e que já foi ter com ela ao Algarve, mas que não aconteceu nada. Januário deixou o João à porta de casa e quis combinar uma saída em Beja no sábado à noite, era festa africana com a melhor kizomba. João não entrou logo. Deixou-se sentar no poial e ficou a ver a luta de dois pardais no telhado da igreja. Entretanto recebe uma SMS do senhorio a dizer que a sanita foi posta nova e vai ter de pagá-la. Os pardais afinal estavam a acasalar.

 

Em casa, um baralho de cartas desafiava o olhar que se levantou pensativo.

 

- Nada está igual, avô.

 

- Está sim. Queres ver? Vamos jogar à bisca, sem trunfo. Ganha a carta mais alta.

Comentários