Diário do Alentejo

Obras de arte cedidas a Museu de Barrancos

02 de março 2021 - 15:00

Cinco quadros de pintores do século XX chegaram ao Museu Municipal de Arqueologia e Etnografia de Barrancos para exposição permanente, “contribuindo para o desenvolvimento do seu núcleo de pintura”. A transferência das obras acontece no seguimento de um protocolo assinado entre o Novo Banco e a Câmara de Barrancos, no âmbito do projeto Novo Banco Cultura. Lançada em janeiro de 2018, a iniciativa enquadra-se num contrato com o Ministério da Cultura que estabelece a partilha, promoção e divulgação das coleções que constituíam o património artístico daquela entidade bancária. 

 

Texto Júlia Serrão

 

A ideia é levar a arte contemporânea ao encontro das pessoas, especialmente das que residem fora dos grandes centros urbanos, regiões do país menos privilegiadas no acesso à cultura. Trata-se de um movimento de descentralização com vista à dinamização da cultura, com especial enfoque em regiões do interior.

 

As obras em exposição no museu da vila raiana de Barrancos, criadas entre os anos de 70 e 90, são da autoria de Francisco Relógio, Júlio Resende, Luís Noronha da Costa, Roberto Chichorro e Manuel Amado. “Ilustram aspetos das diversas formulações plásticas que caracterizam a produção artística nacional no campo da pintura. A produção artística afirma-se progressivamente de modo individual e independente, e é neste contexto que cada um destes pintores desenvolve o seu modo de ver e de pintar, imediatamente reconhecível”, diz fonte do Novo Banco Cultura.

 

Dos cinco artistas, refere a mesma fonte, três têm uma “ligação particular” com o Alentejo: Francisco Relógio nasceu em Vila Verde de Ficalho, no concelho de Serpa; Júlio Resende deu aulas em Viana do Alentejo, no princípio de carreira (1949/50) e depois de regressar da capital francesa; e Roberto Chichorro expôs na galeria de Vila Verde de Ficalho em 2004.

 

O presidente da Câmara de Barrancos considera que quadros “com esta qualidade e de artistas deste nível” são uma mais-valia para qualquer território. “Nomeadamente numa terra como Barrancos, que não tem uma galeria e que, por isso, as pessoas não têm acesso facilitado a este tipo de obras de arte”. Por outro lado, acrescenta João Serranito Nunes, representam uma vantagem “no sentido pedagógico”, já que muitas crianças das escolas podem “trabalhar a estética e todo um conjunto de questões relacionadas com a pintura, a partir deles”. Por último, terá benefícios no âmbito do turismo (pós-confinamento) e consequentemente reflexos na atividade económica do concelho: “Este conjunto de obras trará pessoas a Barrancos”. O autarca refere que o espólio “veio diversificar a oferta” existente no museu, que tinha em exposição um conjunto de artefactos arqueológicos e uma área ligada à etnografia. “O que fizemos foi diversificar a oferta, completando com um núcleo de arte contemporânea”.

 

Neste momento, há já 75 quadros da coleção de pintura do Novo Banco (ex-BES) em 33 museus de norte a sul do país, tendo sido contemplados seis no Alentejo. À medida que chegam aos museus, as obras da coleção ficam igualmente acessíveis ‘online’ com explicação individual e indicação dos museus que as receberam.

 

CINCO OBRAS, CINCO ARTISTAS

 

Júlio Resende marca presença no Museu Municipal de Arqueologia e Etnografia de Barrancos com “Duas figuras”, em óleo sobre tela, de 1981. Nesta obra, o artista “multifacetado”, como refere o texto explicativo individual que a acompanha, recupera a “figuração expressionista, e a cor sóbria e austera sugere a forma”, onde subtis golpes desenham a fisionomia, revelando-se “a expressão psicológica das duas figuras, abstratas e sombrias”. Nascido em 1917, Resende atravessou os principais movimentos artístico da sua época, ensaiando e recriando “novas possibilidades plásticas” resultantes de várias correntes – do cubismo ao expressionismo e à abstração figurativa e geométrica.

 

Manuel Amado está representado com “Janela Aberta II”, uma obra datada de 1989, onde a sua formação em arquitetura é marcadamente notória: “A janela, possibilidade de ligação entre espaços diferentes, entre sombra e luz, interior e exterior, jogo de linhas estruturais com uma estética sedutora”. A luz como a sombra e o silêncio dos espaços desabitados, interior e exterior, recantos e divisões são recorrentes nos seus quadros, numa pintura que se lhe reconhece muito própria, refere fonte do Novo Banco Cultura.

 

De Roberto Chichorro, único artista vivo deste grupo cujas obras estão patentes no Museu de Barrancos, pode ser apreciado um quadro sem título que evoca um mundo “de cores vivas, do azul-turquesa à cor de laranja”, povoado de pássaros, gaiolas e uma figura humana. “A sua obra, ancorada nas memórias do seu universo moçambicano e no conhecimento da pintura europeia, é uma narrativa poética de histórias imaginadas entre uma infância africana e a descoberta de pintura de Mondrian, Malevitch ou Chagal”.

 

Luís Noronha da Costa, artista plástico considerado percursor de arte contemporânea, também estudou e exerceu arquitetura. Mas, simultaneamente, na mesma época (década de 60 do século passado), iniciou uma carreira brilhante na pintura. O uso da pistola de ‘spray’ deu uma marca diferenciada às suas obras. Nesta mostra permanente, apresenta uma sem título.

 

Da obra, também sem título, de Francisco Relógio, diz-se descobrir “reminiscências do grafismo de Fernand Léger, ou das arquiteturas imaginárias de Maurits Escher, visíveis no desenho de janelas sobrepostas que” compõe o cabelo da figura. A tendência ou gosto ‘pop art’ é observável “na sinalética integrada na composição”, conjugando-se com o “universo de origem, expresso no apontamento da paisagem alentejana e na paleta cromática de ocre e amarelos”.

 

A ARTE REFLETE A VIDA

 

Dos artistas contemporâneos com trabalhos expostos no Museu de Barrancos, Francisco Relógio é o único nascido no Baixo Alentejo. Francisco Pedro Relógio, nasceu em 1926 em Vila Verde de Ficalho, terra-fronteira no concelho de Serpa. Com apenas 13 anos fixa residência em Lisboa, indo estudar para a Escola Industrial Fonseca Benevides. Estávamos em 1939. No país vizinho chegava ao fim a Guerra Civil, não sem antes deixar as suas marcas no jovem português revelado artista, segundo ele próprio afirmou em entrevista à televisão pública (RTP 1), em 1978, num programa intitulado “Perfil”, de autoria de Alexandre O’Neill e Rui Brito, e realização de Jaime de Brito. Acrescentava ainda a propósito: “Penso que no meu trabalho, essas raízes que marcaram a minha adolescência estão presentes, denunciando a tragédia que os meus olhos viram”.

 

Francisco Relógio inicia a carreira nas artes em finais dos anos 40, passando por uma fase ligada ao movimento neorrealista – da pintura mural figurativa de grandes proporções. Mais tarde irá enveredar por uma linha identificada com o surrealismo. Diz-se que teria um “traço muito próprio, com inspiração provável nas pinturas astecas”, sendo essencialmente “um grande desenhador”. O historiador e crítico de arte José Augusto França escreve que, as suas figuras, “encadeadas numa obsessiva ocupação do espaço, podem jogar decorativamente em grandes superfícies, com efeitos ilusórios por vezes curiosos, num gosto estabelecido entre a ‘arte nova’ e a ‘pop’ arte’”.

 

Nos anos 50, a pintura e o desenho do artista baixo-alentejano vão definir-se por “construções” frequentemente “labirínticas, povoadas de figuras estilizadas, que ocupam todo o espaço”. Em “A Arte em Portugal no século XX,” o crítico de arte defende que as obras de Francisco Relógio “revelam também, a nível de formulação gráfica, influências de [Jules] Fernand Léger [pintor francês que se distingue como pintor e desenhador cubista], enquanto os conteúdos, nos levam para referências ligadas ao neorrealismo”. Criativo em diferentes áreas, em 1963, e já depois de ter recebido uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian (de 1959 a 1961), “começa a trabalhar em murais e no estudo das técnicas de azulejo”, realizando painéis de mosaico para várias entidades de norte a sul do país. Em Lisboa, podem ser encontrados vários, mas o mais conhecido é o que está no edifício do Banco Nacional Ultramarino em Maputo, capital de Moçambique. Os murais encontram-se em diversos espaços públicos e privados.

 

DESCENTRALIZAÇÃO DA CULTURA

 

Os seus interesses e expressões artísticas foram além da pintura, a sua atividade principal, do desenho e do azulejo, dedicando-se à cerâmica e à coreografia teatral. Foi cenógrafo e figurinista, fez cartões para tapeçarias e ainda ilustração de livros. Do currículo do artista de Vila Verde de Ficalho, consta ainda a colaboração em várias exposições dentro e fora de portas, representando-se em exposições organizadas pela Galeria de Arte do Casino do Estoril, na Galeria São Bento, em Lisboa, no “Group Surrealist Exhibition” – no Ohio, Estados Unidos da América, e da exposição internacional “Surrealismo e Pintura Fantástica”, organizada por Mário Cesariny. Esteve representado no “I Simpósio Internacional de Azulejaria”, organizado na Fundação Calouste Gulbenkian por Santos Simões, em 1971, e na Exposição Internacional de Cerâmica no “Victoria and Albert Museum”, em Londres. No âmbito do teatro, dirigiu uma peça na Casa da Comédia, em Lisboa, e colaborou em vários espetáculos de teatro no Porto, Cascais e Coimbra. Ilustrou textos de escritores e poetas portugueses. Morreu em 1997, deixando um enorme espólio, com várias obras presentes em várias coleções nacionais e estrangeiras.

 

Quando, em 1978, deu a entrevista à RTP 1, Francisco Relógio dizia sentir-se, naquela altura, “um homem isolado”, pelo que vivia e pelo que o rodeava. Direto e assertivo, explicava, entre passas de cigarro: “Os sonhos que existiam dentro de mim caíram. As vagas sucessivas de oportunistas que têm rodopiado neste país e neste baile em que tudo continua na mesma, executaram a minha esperança e, para mal-acompanhado, prefiro ficar só”. O pintor, ilustrador e autor de murais via Portugal como “um país viciado por uma colonização cultural” que dizia ter ficado “presa nas três maiores cidades (Lisboa, Porto e Coimbra)”, ignorando o resto do território. Um país que era “padrasto” para os artistas. “Sempre e mais atualmente, o nosso património artístico e cultural está a perder-se”, alertava, dando exemplos de artistas que tinham vivido miseravelmente ou sido esquecidos. Defendendo que as crises económicas e políticas eram reflexo da grande crise cultural, Francisco Relógio dizia que a procura de uma identidade nacional era urgente.

 

PINTURAS EM BEJA E OURIQUE

 

Conforme noticiado pelo “DA”, também o Museu Regional Rainha Dona Leonor, em Beja, e a Galeria de Arte de Ourique receberam peças da coleção do Novo Banco. Em Beja encontram-se duas obras de Josefa Óbidos: “Natureza morta com prato de queijos e flores” e “Natureza morta com cesto de cogumelos e medronhos” – a natureza morta é um dos seus temas recorrentes.  A primeira tela, povoada de contrates cromáticos, foi realizada a partir de uma composição do pai, o também pintor Baltazar Figueira. Aliás, a pintura é algo no ADN desta família, pois o irmão de Josefa também enveredou pela mesma expressão artística. A segunda, o mesmo tema, diz quem sabe que traduz o “mesmo gosto pela execução do pormenor”, reflexo de “um cuidado exercício de observação”. Os especialistas dizem que uma das características da pintura de Josefa de Óbidos “é a observação” meticulosa “do universo doméstico”. Por sua vez, a Galeria de Arte de Ourique, recebeu seis obras de Gunther Forg (sem título 2000). Pintor, designer gráfico, escultor e fotógrafo alemão, Forg impôs-se no meio artístico ainda muito jovem, destacando-se no estilo abstrato. “A sua obra revisita e explora de modo livre e independente as grandes questões da pintura moderna e do seu legado”.

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