Diário do Alentejo

Ritual do confinamento: uma nova vivência do tempo

26 de fevereiro 2021 - 12:10

Texto Vanessa Schnitzer

 

É quase unânime: o atual confinamento está a custar mais do que o anterior. Desde o primeiro momento, há um ano, que se percebeu que a pandemia iria envolver emoções complexas, oscilantes e internamente contraditórias. Sofrimento com esperança, medo e resistência, tédio com vulnerabilidade, euforia com profunda exaustão. Se servir de consolo, saibamos que a pandemia e os efeitos são democráticos, afetam a todos nós indistintamente. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós. Já dizia Dostoievski: “Somos responsáveis por tudo perante todos”. A experiência do mal atravessa todas as vidas. A crise em que nos encontramos só nos oferece uma oportunidade: a tomada de consciência. Se não tomarmos consciência não seremos capazes de dar o próximo passo.

 

A primeira reflexão é a de saber como chegámos até aqui? Chegámos até aqui porque nos afastamos da vida e dos seus valores. A vida perdeu a sua dimensão simbólica, ritualística, ou seja, perdeu o seu referencial ético. Na senda grega, Heideggar em “Construir, Habitar, Pensar” mostra como a linguagem guardou parte do sentido de pertencer e enraizar-se: o verbo ‘bauen’ [construir] significou, no alemão antigo ‘beo’; habitar pertence à mesma família de ‘bin’ [sou]. ‘Ich bin’ significa eu sou, eu habito. Depois, com o tempo e as escolhas da Humanidade, foi perdendo o seu sentido, em que a regularidade dos fenómenos naturais é transportada para a dimensão dos costumes de uma sociedade. E este distanciamento do homem do seu ‘habitat’ natural é que nos trouxe até aqui, até à idade das trevas, aos chamados tempos kafkanianos.

 

Com a perda dos rituais, desenraizámos, na medida em que os rituais podem definir-se como técnicas simbólicas de instalação num lugar. Transformam o estar no mundo num estar em casa (…) tornam habitável o tempo (Byung- Chul Han). Com a perda dos rituais, deixámos de saber habitar o tempo, por isso desinvestimos da vida agravando o desencontro com ela, renunciámos à audácia de viver em plenitude o aqui e o agora. Parafraseando Saint-Exupery, pode dizer-se que os rituais são na vida o que no espaço são as coisas.

 

Os rituais dão estabilidade à vida, ao permitir uma verdadeira reconciliação com o tempo. Porque o tempo, não é tempo, é antes uma arte. No admirável e clarividente texto “A Lentidão”, Milan Kundera escreve: “Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa alguma, nem de si mesmo”.

 

É neste ponto de vista, que o confinamento poderá ser entendido como uma oportunidade única de redescobrir a sabedoria que existe no tempo.

 

Talvez uma opção seja através de um bom copo de vinho. Para além de aquietar a mente, proporciona um abrandamento interno e provoca o despertar dos sentidos. Através da visão, do tato, do odor e do paladar, mergulhamos num universo de aromas e sabores, de texturas inusitadas que jamais poderão ser duplicadas em nenhuma outra bebida. Em simultâneo, permite-nos descobrir a história engarrafada que foi atesourada com o valor do tempo. Ao degustar um vinho lentamente, deixamos que as lágrimas vertidas no nosso copo tomem conta dos nossos sentidos e escorreguem na garganta como a mais fina gota de orvalho que molha e tempera os espíritos, proporcionando uma incrível viagem de descoberta e ao mesmo tempo o aprofundamento desse encontro connosco próprios. No fim, teremos a certeza de ter vivenciado uma experiência inesquecível, tão concentrada como um rebuçado de história que a memória jamais dissolverá.

Comentários