Diário do Alentejo

“Escrever é um ato de liberdade, agredida pelo confinamento”

23 de fevereiro 2021 - 10:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Francisco do Ó Pacheco é natural de Sines, onde nasceu há 73 anos. Filho de pescadores e operários corticeiros, estudou até ao 7.º ano do liceu, que não completou, e ingressou no mundo do trabalho como profissional de hotelaria, depois de ter sido moço de armazém e servente de fábrica de gelo na empresa do pai. Em maio de 1974 entrou para o Partido Comunista Português onde foi membro da concelhia de Sines e das direções regionais de Setúbal e do Litoral Alentejano. Em 1976 foi eleito presidente da Câmara de Sines com maioria absoluta, resultado que repetiria nas eleições até 1993. Entre 2005 e 2008 foi diretor do “Diário do Alentejo”.

 

No campo das letras, e de uma vasta bibliografia, destacam-se os títulos: “Crónica da 1.ª Greve Ecológica em Portugal" (1999); "25 anos de Poder Local Democrático" (2001), os livros de poesia "Luena da Praia" (2003), "A Ilha das Batas Brancas" (2005) e "Alentejo Salgado e Doce" (2009), "Crónicas de Beja" (2006), os romances “"Angola 1970 – Chanas de Liberdade" (2012), "Vataça, A Favorita de D. Dinis" (2013), "Searas Vermelhas de Abril" (2014) e "O Despontar do Elefante com Pés de Barro" (2017). É ainda autor do livro de contos “Vasco da Gama, O Bastardo Indomável e Outras Estórias", editado em 2020.

 

No campo das letras e da cultura, destaca a distinção recebida do primeiro-ministro do Canadá, pelo seu testemunho acerca da participação na Semana Cultural da Casa do Alentejo, em Toronto; e para a distinção, como poeta, atribuída Centro de Estudos Documentais do Alentejo (CEDA).

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

Durante a Guerra Colonial, em Angola. Os estados de alma são mais intensos em situações extremas e exigiram-me os poemas que mais tarde publiquei no livro "Luena da Praia". Também escrevi muitos textos soltos que, infelizmente, perdi durante as mudanças de aquartelamentos. Por outro lado, e também porque os vivi duramente, tinha decidido para comigo próprio que escreveria a luta épica dos pescadores de Sines em 1982 contra a prepotência industrial e politica, o que aconteceu em 1998, quando deixei o cargo de presidente da Câmara. O resto surgiu naturalmente.

 

Dos vários registos literários, existe algum que seja o de eleição?

Não. Em cada período da minha vida têm sido as próprias vertentes literárias que se encaixam perfeitamente na minha vontade ou inspiração, e depois sai o poema ou a narrativa.

 

Ser alentejano e viver no Alentejo é fonte de inspiração ou limitações para a carreira literária?

Fonte de inspiração, definitivamente. A cultura, a paisagem, as gentes do Alentejo são tão poderosas, cada uma por si e no seu conjunto, que só podem ser fontes de inspiração para os artistas de todas as artes.

 

Da vasta carreira de autor, alguns trabalhos que tenham sido mais marcantes?

Sem dúvida que os trabalhos mais marcantes tiveram a ver com a Guerra Colonial, quer os poemas inscritos no livro "Luena da Praia", quer o romance "Angola 1970 - Chanas de Liberdade". Ambos foram episódios da minha vida que muito contribuíram para a minha formação politica e ideológica. A Guerra Colonial marcou tanto o povo português que tornou inevitável a revolução de Abril de 1974.

 

Quer-nos contar alguns momentos inusitados experienciados ao longo do percurso literário?

Na Casa do Alentejo, em Lisboa, a apresentação do livro "Searas Vermelhas de Abril" foi encaixada entre os vários grupos corais que abrilhantariam a tarde cultural. Meia hora depois de estar a falar sobre a obra literária, há uma voz que pergunta: - Então quando é que vêm os cantadores? Ao que respondi: - Compadre, se quiser apresento o livro cantando! A coisa caiu bem, o pessoal riu-se e até ficou com mais atenção às minhas palavras.

 

As novas tecnologias são uma mais-valia ou representam um constrangimento para a literatura?

Creio que ambas. São mais-valia porque permitem uma maior divulgação e democratização do trabalho literário através das redes sociais, dos ‘blogs’, etc,. Mas, simultaneamente, trazem consigo uma maior concorrência, que por sua vez obrigará a uma maior exigência quanto à qualidade dos trabalhos.

 

Qual a opinião sobre o universo literário em Portugal?

Pessoalmente, e quanto às editoras, não tenho razão de queixa uma vez que tenho publicado os meus trabalhos com alguma facilidade. Não tenho dúvida que as pequenas editoras se batem com muitas dificuldades de sobrevivência económica e que estão sempre arriscadas a serem absorvidas pelas grandes empresas do ramo, como tem acontecido nestes últimos anos. Quanto aos trabalhadores da escrita, acho que estamos muito bem, os atuais escritores e poetas honram a tradição.

 

E o acordo ortográfico?

Absolutamente contra. Já deveria ter sido revertido.

 

Como tem sido vivido este período de ‘stand by’ no mundo?

Muito duro. Confinado, confinado, confinado. E o pior é que esta "porra" parece não ter fim com todas estas mutações virais. Vou escrevendo, mas o escrever aparece quase como uma obrigação, “já que estás em casa... escreve!”, e assim não dá! Escrever é um ato de liberdade e o confinamento agride essa liberdade. Publiquei o ano passado, já em plena pandemia, o livro "Vasco da Gama, O Bastardo Indomável e outras Estórias". Foi azar, quando o Governo decidiu o confinamento tinha acabado de ser impresso.

 

O que está na manga a curto e médio prazo?

Vou escrevendo. Espero acabar, este ano, um novo livro que sairá, se já tiver terminado a pandemia. Há dois anos fui convidado pela Casa do Alentejo de Toronto, no Canadá, na qualidade de escritor alentejano, e espero ser convidado para outros locais para falar sobre o meu trabalho, isto quando o "bicho" nos deixar sossegar.

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