Texto Luís Miguel Ricardo
“Quem sou? Bom, na verdade nunca pensei muito nisso. Acho que sou uma pessoa que ama a liberdade, que estima os amigos e que aprecia, acima de tudo, a capacidade de entrega do ser humano aos outros, a capacidade de ser solidário. Em traços largos, será isso. Sou também uma pessoa cheia de defeitos”. Assim se define Paulo Monteiro, um dos nomes da banda desenhada contemporânea aqui, ali e além. Um nome que colocou Beja no mapa da BD, que já correu o mundo ao sabor dos traços que fazem nascer personagens, dos traços que lhes dão personalidade, voz e emoções.
Paulo Monteiro nasceu em Vila Nova de Gaia, em 1967. Licenciou-se em Letras, pela Universidade de Lisboa, em 1991, e um ano mais tarde atracou a Beja. “Esta última data é a mais importante porque foi, sem dúvida, a melhor coisa que fiz na vida! Em Beja aprendi a amar profundamente o Alentejo. Encontrei amigos, projetos, sonhos e a possibilidade de os concretizar. Beja deu-me quase tudo”.
Como foi descoberta a vocação para a banda desenhada?
Cresci rodeado de livros e de revistas de banda desenhada, graças aos meus pais e ao meu irmão. Para mim, a BD fazia parte do quotidiano. E era uma coisa mágica! Num minuto estava no Alasca, no outro na Malásia ou na Ilha de Páscoa! Os livros e revistas de BD e os livros de aventuras do Emilio Salgari, e também do Jack London e do Stevenson, entre outros, foram responsáveis por essa descoberta. Li “O Apelo da Selva” aos 9 anos e a “Ilha do Tesouro” aos 10. Nessa altura já tinha lido e relido as aventuras de Tintin e de Blake & Mortimer, o Tenente Blueberry, as aventuras do agente espácio-temporal Valérian, e por aí afora. Tinha a cabeça cheia de sonhos! A possibilidade de contar histórias com imagens fascinou-me desde sempre. A partir de certa idade, passei também a preferir autores mais intimistas, como Altarriba e Kim, David B, Craig Thompson, Gipi, Sacco, Tanigushi, etc. Hoje são esses autores que me fascinam. Falo da área específica da BD, claro. Tenho também os meus poetas e escritores.
Em que circunstâncias se dá a sua chegada a Beja?
Quando o meu querido amigo Rui Aldegalega veio trabalhar para Beja, em 1991, vim visitá-lo. Foi paixão à primeira vista. Nessa altura estava longe de vir para Beja. Estava a fazer o mestrado na Universidade de Lisboa e a desenhar para a revista “Rua Sésamo”. Mais tarde acabei por concorrer para bolseiro, ao Museu Regional, e fiquei. Nesse mesmo dia desisti de tudo e vim para Beja. A minha cidade. Tinha 24 anos, tenho 53.
Viver no Alentejo é fonte de inspiração ou fonte de limitações para a carreira?
Foi sempre uma fonte de inspiração! Há uma gentileza nas pessoas, uma educação, uma forma de estar, que me faz sentir verdadeiramente em casa. Nem sei se saberia viver noutro sítio! O resto é menos importante.
Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira, quais os mais marcantes?
Antes do mais, e em relação ao trabalho que faço na Câmara de Beja, o Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja. É um projeto maravilhoso. Nas últimas edições temos rondado os 10 mil visitantes. Gosto particularmente do festival, porque, para além de ser um tema que me apaixona, é também uma oportunidade fantástica de trabalhar de perto com uma série de amigos maravilhosos. O festival é organizado pelo município, mas tem muita gente a ajudar. Não poderia ser de outra maneira. Na verdade, gostei muito de tudo o que fiz ao longo da vida: trabalhei nas vindimas, passei filmes de Buster Keaton e Charlot, de terra em terra, escrevi para a rádio e para os jornais, trabalhei no Cais Marítimo de Alcântara, toquei guitarra em lares, fui professor de Geografia e Ciências da Natureza, fiz cenários e figurinos para teatro, teatro de sombras chinesas, teatro de fantoches, participei em escavações arqueológicas, fiz a curadoria de muitas dezenas de exposições, publiquei vários livros, realizei um filme de animação. Tenho tido muita sorte.
E dessa vida gorda em criações artísticas, alguma que seja mais relevante?
O trabalho mais relevante que realizei foi o livro “O Amor Infinito que te tenho”. O livro acabou por ser um sucesso em Portugal e na Europa. Tive vários prémios e visitei muitos países. Uma altura incrível da minha vida. Sairá a quarta edição portuguesa no mês que vem. O livro foi publicado em várias línguas e está à venda em muitos países.
Que papel desempenham as novas tecnologias na sua vida e carreira?
Sou um bocado inapto em relação às tecnologias. Mas tenho Facebook. Gosto muito! Reencontrei colegas e amigos de quem não sabia há anos. Já fomos almoçar e jantar. Há uns meses estive em Alverca com amigos que não via desde os meus 17, 18 anos. Estão todos velhos e gordos, como eu. Tenho muitos amigos no Facebook. Amigos que têm interesses em comum com os meus: cinema, BD, pintura, literatura. Ah, e também não me importo de ver fotografias de gatos, de pequenos-almoços ou de paisagens espetaculares! Nem tudo é bom, claro. Também tenho tido conversas “tóxicas”. Custa-me perceber a crueza e a falta de humanidade de certas propostas políticas. Em relação ao meu percurso como autor, ponho uns desenhos de vez em quando.
Qual o panorama da banda desenhada em Portugal e no Alentejo?
Posso dizer que a banda desenhada passa um bom momento, embora seja muito difícil viver da BD no nosso país, são poucos os autores que o conseguem. Mas é fácil viver para a BD. Há editores, há interesse, crítica especializada, eventos. O problema, que é também o problema do romance, da poesia, do ensaio, é que o mercado é pequeno. Do ponto de vista económico, isso é mau. Do ponto de vista artístico, é maravilhoso, porque os autores trabalham sem qualquer tipo de imposição. O Alentejo, nomeadamente o Baixo Alentejo, integra-se neste contexto. Com a vantagem de existirem alguns equipamentos e estruturas que prestam apoio aos autores, publicando e divulgando o seu trabalho. Falo da Bedeteca de Beja, claro. Ainda no final do ano fizemos uma enorme exposição em Bruxelas. Em dezembro fizemos várias intervenções sobre Beja e sobre a BD portuguesa para o Brasil, para a Bélgica e para a França. Além das iniciativas do município de Beja que decorreram e decorrem um pouco por todo o país. A Bedeteca é um equipamento municipal muito dinâmico. Além deste trabalho, reunimo-nos todas as quartas-feiras, no Ateliê de BD. Neste momento somos 18 autores.
Como tem vivido este período de pandemia?
Tudo isto é surreal e acarreta um enorme sofrimento para a maioria das pessoas. Espero bem que passe depressa! Eu tenho continuado a trabalhar, na Câmara, claro. Mudei agora de divisão e, entre outras coisas, dedicar-me-ei ao projeto do futuro Museu da Banda Desenhada de Beja, um projeto do município que dotará a nossa cidade de uma oferta ímpar no país. Basta pensar no Bordalo Pinheiro, no Almada Negreiros, no Stuart de Carvalhais, no Carlos Botelho, no Eduardo Coelho, entre outros, para ver a qualidade da nossa BD. O país merece e precisa deste museu. Esta oferta, aliada à Bedeteca e ao Festival, fará de Beja o centro deste movimento.
E enquanto criador de BD, o que está na “manga” a curto e médio prazo?
Estou a escrever e a desenhar um novo livro: o “Estrela”. Ganhei uma bolsa de criação literária do Ministério da Cultura para me dedicar ao livro nos próximos meses. Espero que corra tudo bem. E que seja um bom livro.