Diário do Alentejo

Como Salazar usou o cinema para promover o regime

09 de fevereiro 2021 - 10:20

Chama-se Maria do Carmo Piçarra, nasceu há 50 anos no Convento das Carmelitas em Moura e é escritora e professora. Recentemente lançou o livro “Projetar a Ordem. Cinema do Povo e Propaganda Salazarista 1935- 1954”.

 

Texto Marta Louro

 

Vive em Lisboa, mas sempre teve “ligações fortes ao Alentejo. A dada altura” da sua vida trocou a capital de Portugal pela Serra d’Ossa, no Alto Alentejo. Durante seis anos, entre 2000 e 2006, viveu na Quinta de Monte Virgem, mas um incêndio, trocou-lhe as voltas: “todas as nossas coisas arderam, menos a casa”. Nessa altura regressou a Lisboa.

 

Estudou jornalismo e durante muitos anos colaborou com jornais. Foi crítica de cinema. Em 2000, quando estava a fazer o mestrado com orientação do jornalista Mário Mesquita [antigo diretor do “Diário de Notícias”], pediu uma bolsa de investigação – que na altura se chamavam bolsas artísticas – à Fundação Calouste Gulbenkian para estudar de que modo o Estado Novo usou uma coleção de filmes de atualidade cinematográfica, chamada “Jornal Português”, para se promover e fazer propaganda.

 

“Entretanto, ainda em 2006, trabalhei durante dois anos com crianças e jovens de um bairro de barracas habitado por pessoas de nacionalidade cabo-verdiana e guineense. Percebi que existia um racismo muito grande e, a partir daí, a minha pesquisa começou a ter mais inflexão relativamente às questões do colonialismo e como é que o Estado Novo usou o cinema para mostrar que Portugal não era um país racista”.

 

Para Maria do Carmo Piçarra, o jornalismo “era muito imediatista”. Por isso, acabou por se especializar em cinema. Fez uma tese de doutoramento – que depois foi publicada em livro, em 2015 – denominada “Azuis Ultramarinos”, sobre a propaganda colonial e a censura durante o Estado Novo e realizou um pós-doutoramento sobre como é que colonialismo português foi filmado no cinema.

 

Ainda em 2006, a também professora, publicou a obra “Salazar vai ao cinema” e entre 2013 e 2015 editou uma trilogia de livros que reúnem textos sobre Angola, escritos por vários autores. O primeiro volume retrata “como é que Angola foi filmada no período em que era um território não independente”. O segundo baseia-se na forma como “Angola começou a ser filmada durante as lutas de libertação a partir de 1961”. O terceiro, e último volume, fala sobre o cinema feito depois da independência de Angola.

 

Pelo meio escreveu outras obras, sempre debruçadas sobre o cinema. “Sou uma pessoa que trabalha muito com arquivo”. Quando estava a terminar o pós-doutoramento, Maria do Carmo Piçarra encontrou Torre do Tombo, em Lisboa, documentação sobre cinema do povo. “Isso interessou-me muito”. E foi aí que surgiu a ideia para a sua mais recente obra intitulada “Projetar a Ordem. Cinema do Povo e Propaganda Salazarista 1935- 1954”, na qual retrata a história do cinema e da propaganda salazarista.

 

Em entrevista ao “Diário do Alentejo”, a autora explica que em 1935 surgiu o denominado “cinema do povo”. A ideia era apresentar, primeiro em Lisboa, nas juntas de freguesia, nos sindicatos e ao ar livre, nos meses de verão, filmes de propaganda, “acompanhados de doutrinação por pessoas ligadas ao regime. Em geral eram filmes anticomunistas”.

 

“Quando começou a Guerra Civil espanhola, no verão de 1936, existiu a necessidade dessa propaganda andar pelo país. A partir de dezembro de 1936 e até 1954, dois camiões ambulantes, com autonomia do ponto de vista energético, começaram a andar por Portugal a mostrar filmes de propaganda sobre o Estado Novo”.

 

“A diretiva” explica, “era levar o cinema a aldeias e a populações onde não houvesse cinema nem eletricidade. Isso causou um grande impacto. Existem relatos de pessoas que fugiam quando as sessões começavam”.

 

Nas 420 páginas organizadas cronologicamente, é também retratado, que “enquanto no norte do país, as sessões de cinema tinham quase sempre pessoas disponíveis para ir fazer a doutrinação – que geralmente era um professor, um padre, o presidente da União Nacional Local, ou o chefe da Legião Portuguesa – no Alentejo isso raramente acontecia”.

 

As sessões de cinema ambulante passaram “um bocadinho por todo o lado”. No Baixo Alentejo passaram por locais como Moura, Serpa, Baleizão e na Mina de São Domingos, em Mértola. Na obra, Maria do Carmo Piçarra explica como era o dia a dia das equipas que andavam nos camiões. Essas equipas eram compostas por um motorista, um projecionista e um ajudante. Todos eles tinham uma baixa escolaridade e eram mal pagos. Muitas vezes existiam problemas de alcoolismo.

 

Conta também como é que este dispositivo do cinema do povo cria uma cinemateca, isto é, uma coleção de filmas, que está na origem da criação da cinemateca portuguesa. “Em 1948, quando saiu a primeira lei do cinema, foi criada a cinemateca nacional. Quem estava à frente desta programação era José Félix Ribeiro, que ainda hoje dá nome à sala maior da cinemateca portuguesa, dirigida pelo próprio após o 25 de Abril. Ele é uma daquelas figuras que ascende durante o Estado Novo e que é consagrada depois do 25 de Abril. Ainda hoje se mantém esta reverência. Durante muitos anos foi o principal historiador de cinema em Portugal. Houve uma altura em que não se escrevia nenhum texto de investigação ou sobre a história do cinema em Portugal, sem se citar o José Félix Ribeiro”, refere.

 

No livro, a autora conta estas e muitas outras histórias situadas no período entre 1935 e 1954. Maria do Carmo Piçarra quer apresentar a obra pelos diversos cineclubes que existem no país.

 

A DOUTRINAÇÃO DO REGIME

 

A atividade do cinema do povo, assegurou Maria do Carmo Piçarra em entrevista ao “Diário de Notícias”, foi permeável a mudanças, ideológicas e de foco, ocorridas. “Se até 1943 a propaganda anticomunista e a promoção das casas do povo é central, e se mostram sobretudo filmes de sustentação da ordem e filmes, documentais e de ficção, de propaganda explícita ao Estado Novo e ao franquismo, com a vitória aliada em perspetiva, na guerra, há um aligeiramento na programação do cinema ambulante”. A partir dessa altura, as "comédias à portuguesa" ou "filmes regionais" passam a ser articulados, na programação feita por Félix Ribeiro, com as atualidades e documentários de propaganda. “Mantêm-se, porém, as sessões de doutrinação, pelos responsáveis da União Nacional, Legião Portuguesa, das Casas do Povo, pelos padres, professores e figuras notáveis das localidades visitadas”. Mais frequentes no norte do país. Mais raras no Alentejo.

Comentários