Diário do Alentejo

Músicos tentar "salvar" cante ao despique e baldão

17 de janeiro 2021 - 20:25

Não ascenderão a duas dezenas, entre Castro Verde, Ourique, Odemira e Almodôvar, os homens, mestres cantadores, que mantêm viva a tradição centenária de cantar ao desafio. Com eles guardam a herança e a lembrança de tempos remotos, onde o Cante corria feiras, romarias e bailes, alongando as tardes, noite dentro, se acaso se sentasse à mesa na venda (taberna) mais próxima.

 

Texto: Rita Palma Nascimento

 

De origem trovadoresca, o cante de improviso, nas suas modalidades de despique e baldão, foi mantido vivo por poetas populares, que nas suas rimas improvisadas abordavam assuntos diversos, sustentavam teorias, acertavam contas antigas, defendiam a honra e cantavam vivências. Hoje, ainda é possível vê-los, aos mestres cantadores, sentados em torno de uma mesa regada e composta pelos tradicionais sabores e sonoridades regionais, trocando olhares, pigarreando e limpando a garganta enquanto lamentam a voz enrugada, que já não é a mesma de outros tempos. Entre eles, o tocador e a campaniça que acompanha as vozes e dá início ao desafio. Repentista, a poesia mais ou menos cortante, mais ou menos marota, mais ou menos intimidante, flui ao sabor da imaginação, das histórias e vidas presentes, durante horas, sem quebras nem pausas. O tocador, júri da roda que canta, à vez, no sentido inverso aos ponteiros do relógio, não perde as cordas nem a atenção às regras inicialmente estabelecidas – embora mais exigentes no despique do que no baldão – assinalando as penalizações que o cantador pagará com recurso a uma rodada.

 

“Sempre assim foi, é assim que ainda acontece e é assim que queremos que continue a ser por muitos mais anos”, diz Pedro Mestre, músico alentejano que nos últimos anos se tem dedicado a projetos que visam dar continuidade ao ensino do cante de improviso e da viola campaniça. Sobre as diferenças entre as duas modalidades, evidencia que “o baldão é mais recente e cantado mais ‘à balda’, que surgiu da necessidade de simplificar as regras muito rígidas do cante a despique, que não serão, aqui, o mais importante. A estrutura estrófica é diferente, cada cantador procura responder ao seu antecessor recorrendo a quadras sabidas ou improvisadas em rima cruzada, onde se dobram os últimos dois versos, criando uma sextilha. No despique, a estrutura é com dois versos brancos e a obrigatoriedade de se seguir o ‘ponto’, que não é mais do que a terminação do segundo verso, cuja rima deverá ser mantida até ao final do desafio. No baldão essa regra não existe”.

 

Pedro Mestre lembra que o despique “é a modalidade menos coletiva do Cante e que as estrofes cantadas pertencem apenas ao poeta cantador, sendo improvisadas no momento, apenas para aquele instante concreto. Ninguém as escreve, nem mais ninguém as canta”. O respeito é devido.

 

Ao contrário do que tem sucedido com os grupos corais desde 2014 - ano da elevação do Cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade pela Unesco - que têm vindo a ganhar adeptos dentro das gerações mais novas, o cante de improviso tem vindo a perdê-los. “Houve uma quebra no dinamismo e na atividade do improviso, depois do desaparecimento de muitos dos seus mestres e intérpretes, aliado ao desinteresse dos mais jovens”, clarifica Pedro Mestre.

 

Nesse sentido, “houve uma preocupação comum a várias entidades, para que não se deixasse morrer esta modalidade”. Para o efeito, foi criado no concelho de Odemira, mais concretamente em S. Martinho das Amoreiras, em 2017, o Centro de Valorização da Viola Campaniça e do Cante de Improviso. Um projeto que o músico integra e que resultou de um consórcio entre a Câmara de Odemira, a Junta de Freguesia de S. Martinho das Amoreiras, a Casa do Povo da mesma localidade e a associação para o desenvolvimento de Amoreiras-Gare, entidades que uniram os seus esforços no sentido de valorizar expressões culturais, estudando, formando e divulgando “manifestações instrumentais e vocais associadas à viola campaniça, ao cante de improviso e à poesia popular”.

 

Pedro Mestre conta-nos que foram criadas oficinas de ensino, em vários horários, naquele concelho, que visam a partilha de experiências e de ensinamentos dos oito aos 80 anos, em contexto real. “Juntamos mestres e aprendizes à roda de uma mesa, em ambiente descontraído e de taberna, sempre acompanhados pelo tradicional copo de vinho e pelo petisco, para que se torne mais fácil o ensino, o repentismo e a integração dos jovens”.

 

Também nas escolas de primeiro ciclo existe agora o ensino do cante e da viola campaniça, “por via da necessidade de criar nas novas gerações o interesse pela herança e tradições da região”. O fabrico da viola, por exemplo, teve que ser reinventado, após a morte dos últimos artesãos. “O método não foi passado e foi necessário recriar a arte da construção deste instrumento. Através do conhecimento adquirido, é hoje possível ensinar os mais novos a fabricar e tocar a sua própria viola”, diz Pedro Mestre, acrescentando que, na sua forma peculiar de ser tocada, se a acompanhar o baldão, a campaniça “é uma voz que se junta às outras vozes”.

 

Instrumento de eleição da tradição musical do Baixo Alentejo, a viola campaniça não só acompanha o desafio, como as tradicionais modas alentejanas ou certos passos de dança, sendo presença assídua e inquestionável em diversos momentos culturais da região, assumindo, inclusivamente, a sua importância enquanto embaixadora da identidade do concelho de Castro Verde.

 

DESAFIO

 

O cante ao despique e baldão é uma forma de cantar totalmente de improviso e ao desafio, que era comum em todo o Baixo Alentejo, chegando mesmo à serra algarvia. Contudo, era nos concelhos de Odemira, Ourique, Castro Verde e Almodôvar que tinha a sua maior expressão e prática mais constante. O despique surgiu em primeiro lugar, sendo useiro e vezeiro em todas as feiras e romarias do Baixo Alentejo, sendo a Feira de Castro o melhor exemplo, onde todos os cantadores afamados acorriam, e onde era normal “acertarem as contas” que tinham ficado pendentes da feira anterior.

 

Era comum até haver mais que um cante na feira, tendo cada barraca de comes e bebes meia dúzia de cantores a digladiarem-se. O cante de despique obrigava todos os cantores a “seguirem o ponto”, ou seja, a utilizarem sempre a mesma rima nas suas cantigas. Quem não o fizesse pagaria uma rodada aos restantes. Derivado à rigidez do despique (e às suas consequências), procurou-se arranjar uma forma de cantar ao desafio mais solta, mais “à balda”, como diz Pedro Mestre. Daí surgiu o cante ao baldão, que apesar de possuir uma estrutura fixa não obedece a ponto.

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