... e a quem ofereceram uma navalha
Texto Luís Godinho
Lá começa a Bíblia: “No início era o Verbo”. Bom, começa assim se assumirmos como válida a tradução efetuada a partir do latim. Se escolhermos o grego como fonte original, aí a expressão é ligeiramente diferente: “No início era a Palavra e a Palavra estava com Deus e Deus era a Palavra”. Verbo ou Palavra, neste caso, interessa pouco. No que ao caso interesse, o caso de Fernando Estevens, no início… era uma navalha. E esse início, ou melhor, o pré-início, aconteceu numa taberna de Vila Alva quando Fernando Estevens, “entre dois copos de vinho e outras tantas dentadas numa gamboa madura”, disse para quem o quis ouvir: “Para ser alentejano já só me falta uma navalha e aprender a cantar”.
Passou-se o resto do dia. Passou-se a noite. E quando outro dia chegou, Manuel António Calhau Pacheco, também conhecido por Mestre Baldé, dirige-se a Fernando Estevens e oferece-lhe uma navalha dizendo que “cada um nasce para aquilo que tem jeito”. Nascido em Lisboa, “alentejano de adoção”, desde sempre “marcado pelas memórias dos distantes [meses de] agosto que passava em Vila Alva”, terra onde os pais nasceram, Estevens não tinha ilusões, bem sabendo estar mais habilitado ao manejo de uma navalha no esquartejamento de um marmelo do que na entoação de uma moda. Mas foi aí, nesse preciso instante, que nasceu a ideia de fazer um livro, agora publicado: “Cante Alentejano – Cancioneiro Ilustrado”, foi lançado na Casa do Alentejo, em Lisboa.
“Nunca tive jeito para cantorias, mas as modas alentejanas sensibilizam-me de uma forma especial. Entram-me pelos sentidos e vão tocar-me na alma. Desconheço em que parte do meu corpo se situa a alma, mas é mesmo por isso que digo que é lá que me toca – não sei o sítio, mas sinto-o”, diz o autor.
Ao contrário de Fernando Estevens, é ele que o diz, Mestre Baldé “tem uma voz que se ajusta à toada e à harmonia do cante como uma samarra feita à medida”, assim como um “barítono que ficou escondido” na imensidão da planície alentejana: “Confesso que não o trocaria a cantar o Castelo de Beja na taberna do Manuel Fernandes por uma qualquer Traviata no palco do São Carlos”.
Licenciado em ‘design’ de comunicação pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, Fernando Estevens tem uma (já longa) carreira no mundo das artes, iniciada na década de 80 no atelier de Paulo Guilherme d’Eça Leal, primeiro como assistente de produção, depois como desenhador, finalmente no ‘design’ gráfico, seguindo-se várias colaborações com arquitetos e artistas plásticos. “Curiosamente, é durante a minha passagem pelas Belas-Artes e por todo aquele ambiente criativo que sinto um forte apelo pelo regresso às raízes e aos pilares da minha identidade”. Vila Alva passa a ser “poiso” regular, e o cante, como vimos, arrebata-lhe definitivamente a alma. “Sempre me emocionou. Ouço-o desde que me lembro de mim próprio. Apesar de sempre ter vivido em Lisboa, nunca houve Natal em que não ouvisse o meu pai cantar ao Menino”.
Claro que, teimosamente, lá foi insistindo em se juntar ao grupo de cantadores. E a navalha oferecida por Mestre Baldé marcaria o início do projeto do livro: “[Já que] não tenho jeito para cantar, ‘canto’ através deste cancioneiro agora ilustrado como forma de expressão para exaltar a minha alma alentejana e homenagear a arte do cante”.
Com cerca de uma vintena de ilustrações, o cancioneiro perpetua a letra de 18 modas, entre as quais duas das que por ali se encontram entra as mais cantadas: “Ó Cuba Terra Bendita” e “Vila Alva é nossa terra/ Como ela não há igual”. Os textos introdutórios são assinados por João Português (presidente da Câmara de Cuba e uma das entidades que patrocinou a publicação), pelos professores da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa Aurelindo Jaime Ceia (“O que é o design – A colher do pastor”) e Fernando Rosa Dias (“Para uma grafia imagética do canto alentejano”) e pela professora de história Francisca Bicho (“O Cante alentejano – cantar, uma forma de estar e de sentir”).
Fernando Rosa Dias sublinha que as ilustrações de Fernando Estevens “respondem a letras do cancioneiro” popular alentejano. “Tais letras lançam ou evocam elementos referenciais que fazem a grelha mover-se para ir ao encontro de figurativas sugestões gráficas que correspondam. O grafismo, com o desenho e a cor, responde a um apelo, a uma voz que os versos do cancioneiro abrem (…) são objetos, figuras, paisagens, animais, árvores e vegetações, que estão nos versos e que fazem parte de uma tradição ou do seu imaginário”.