Diário do Alentejo

Solim considera imprescindível investigar e culpabilizar proprietários das herdades

07 de dezembro 2025 - 08:00
Em causa está a operação “Safra Justa”, que identificou cerca de 500 vítimas de uma rede criminosaFoto | Ricardo Zambujo

O fenómeno continua a repetir-se. Em três anos, é a terceira operação policial de desmantelamento de redes criminosas de auxílio à imigração ilegal e tráfico humano no distrito de Beja. Os intervenientes, embora sendo pessoas diferentes, são os mesmos. Isto é, portugueses e estrangeiros que se aproveitam das “fragilidades” de imigrantes ilegais para “trabalho escravo”. Para Alberto Matos, dirigente da Associação Solidariedade Imigrante (Solim), em cada freguesia da região existem situações destas a acontecer diariamente e, por isso, defende ser necessário investigar e culpabilizar também as herdades e os seus “grandes proprietários” por compactuarem e lucrarem com “estas máfias”.

 

Texto | Ana Filipa Sousa de SousaFoto | Ricardo Zambujo

 

“É preciso seguir o rasto das carrinhas e dos autocarros para ver quem sabe e quem são os senhores importantes e cheios de dinheiro, [donos] de grandes multinacionais financeiras de olival e amendoal, que permitem que nas suas propriedades haja trabalho escravo e que se comentam ilícitos, nomeadamente, em relação às finanças e à segurança social”. Quem o diz é Alberto Matos, membro da direção da Associação Solidariedade Imigrante (Solim), quando questionado pelo “Diário do Alentejo” (“DA”) quanto à recente operação policial que permitiu desmantelar, na semana passada, uma rede criminosa que operava no concelho de Beja.Segundo o também responsável pela delegação do Alentejo da Solim, com sede em Beja, este tipo de operações e, consequentemente, de situações de auxílio à imigração ilegal, falsificação de documentos, fraude fiscal e tráfico humano, deixaram de ser novidade no Alentejo. Neste caso, a singularidade é “o aparecimento de um número significativo de mais de metade dos detidos ser das forças policiais” e desempenharem “o papel de capatazes ou de milícia patronal”. “Isto é extremamente grave. O que é constante é o recurso, por parte das entidades e dos grandes proprietários desta região, à contratação de pouquíssimos trabalhadores, para não dizer nenhuns em alguns casos, e à subcontratação abusiva [de empresas de trabalho temporário para realizar] tarefas agrícolas por um preço irrisório que não daria para pagar qualquer salário”, refere Alberto Matos.Para o responsável, apesar de estas ações policiais serem imprescindíveis para o combate ao crime, é cada vez mais importante “ir mais além” e investigar os proprietários das herdades que contratam este tipo de trabalhadores, pois “são tão responsáveis, ou mais, por aquilo que se passa na sua propriedade”. “É preciso determinar quem contrata estas máfias para arranjar trabalhadores para realizarem estas tarefas, [porque] também são culpados. Em último caso são quem lucra mais com isto, [mesmo comparando] com as máfias, porque ganham dinheiro, não têm trabalhadores, não têm de pagar segurança social [e, por isso], querem lá saber se são escravos ou se são agredidos”, afirma. Paralelamente, Alberto Matos aponta o dedo às políticas da imigração, nomeadamente, ao término das manifestações de interesse em junho de 2024, que “não acabou com a bandalheira como eles diziam”. “[A situação] está pior. Ao dificultarem os trabalhadores que estão a desempenhar essas tarefas de trabalho, sazonais ou não, de se estabilizarem e legalizarem-se cá, acabaram por fechar a porta à legalização. Portanto, varreram a coisa para baixo do tapete”, elucida o responsável.Desta forma, prossegue o dirigente, “não há menos imigrantes”, mas, sim, “mais imigrantes em situação ilegal e em trabalho escravo”, sendo “os lucros tantos que já dá para contratar polícias corrompidos”. Recorde-se que no passado dia 25 de novembro a Polícia Judiciária (PJ) desmantelou uma organização criminosa de auxílio à imigração ilegal, falsificação, fraude fiscal e branqueamento de capitais que operava em Beja, Portalegre, Figueira da Foz e Porto. No total, tendo em conta a PJ, foram detidas 17 pessoas, das quais 10 militares da GNR, um elemento da PSP e seis civis que, alegadamente, terão aproveitado a fragilidade das vítimas, cerca de 500, para “retirarem avultadas vantagens económicas”.Segundo o Ministério Público (MP), os imigrantes “estavam dispostos a trabalhar sem contrato formalizado” e recebiam “uma remuneração inferior à praticada no mercado para as funções” realizadas “em setores de utilização intensiva de mão de obra, como a agricultura”. Fonte da GNR confirmou, em declarações à agência “Lusa”, que quatro civis são portugueses e dois estrangeiros, sendo que entre os nacionais encontra-se “o cabecilha” da rede, enquanto os restantes são os “seus braços direitos”. No sábado último, dia 29 de novembro, o Tribunal da Comarca de Lisboa confirmou que dos 17 detidos apenas três civis ficaram em prisão preventiva, enquanto um militar da GNR, o agente da PSP e os outros dois civis ficaram com o termo de identidade e residência. Segundo o tribunal, os restantes elementos da GNR saíram em liberdade, pois “não podem ser utilizadas para efeitos de fundamentação das medidas de coação” as escutas telefónicas que não foram transcritas pelo MP. “Dos 231 artigos em que se imputavam factos aos arguidos, cerca de 89 assentavam exclusiva ou parcialmente em escutas não transcritas”, refere o tribunal, acrescentando que “todos os factos cuja indiciação se baseava exclusivamente em escutas não transcritas foram considerados não indiciados por não se poder valorar essa prova, designadamente, a maioria dos factos imputados aos arguidos elementos das forças de segurança”.Por outro lado, a ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral, determinou na terça-feira, dia 2, à Inspeção- -Geral da Administração Interna (IGAI), a abertura de processos disciplinares aos 11 elementos das forças de segurança detidos no âmbito da operação “Safra Justa” de modo a “avaliar a necessidade de aplicação de eventuais medidas cautelares”. No mesmo dia, segundo fonte da GNR ainda em declarações à “Lusa”, os militares da GNR voltaram ao serviço, tendo sido escalados para os postos onde se encontravam colocados, aguardando pela aplicação de medidas provenientes dos processos disciplinares. Perante estas últimas informações, o dirigente da Solim, Alberto Matos, mostra-se surpreendido pelo rumo que a operação levou, com “quase todos soltos”, e remata afirmando que não haverá uma verdadeira mudança “enquanto não se mudar o sistema, os métodos de contratação e as leis que permitem e potenciam ainda mais estas situações”.“Vamos ver no que é que isto dá, [mas] digo que se houvesse estas investigações não em todos os concelhos, mas em todas as freguesias, encontraríamos disto em todas”, resume.

 

“Plataforma de integração e inclusão social e laboral” de migrantes com “a parte técnica” concluída Em janeiro deste ano, a Incubadora de Inovação Social do Baixo Alentejo (Iisba) apresentou, em conjunto com outras entidades parcerias, a construção de uma “Plataforma de integração e inclusão social e laboral”, ou seja, uma ferramenta que tem como objetivo agilizar os processos de contratação legal dos trabalhadores migrantes por parte das empresas locais. Cerca de 11 meses volvidos, João Cascalheira, coordenador da Iisba, em declarações ao “DA”, admite que a sua elaboração teve “um contratempo devido à questão das eleições autárquicas” e que, por isso, apesar de a “parte técnica” ao nível do design estar concluída, depois de uma reunião com o atual executivo da Câmara de Beja é que se passará para a fase de abertura de um concurso público para “que uma empresa possa construir a plataforma”. “Quanto à reunião [agendada para dia 10] o novo executivo pode querer realizar algumas alterações ou apresentar sugestões que temos de ter em consideração, [mas], neste momento, está tudo pronto para ser lançado o concurso”, assegura. Paralelamente, conforme explica o responsável, iniciar-se-á “uma fase de colheita de dados” com as juntas de freguesia, para que “percebamos claramente quantos migrantes temos no nosso território” para que, posteriormente, se consiga “dar o apoio ao nível da integração, quer laboral, quer social”. Mais tarde, ainda sem datas marcadas, realizar-se-á também uma “sessão de parecer e de auscultação da comunidade migrante”. Recorde-se que este projeto é liderado pela Câmara de Beja e conta com o apoio do Iisba e do laboratório Data Colab.

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