Diário do Alentejo

Crónica do Cante: Quando o cante encontra o folclore: uma harmonia possível!

01 de junho 2025 - 08:00

Em 1845 nasce pelo punho de Willian Thoms o termo “folklore”, para abreviar o título de um artigo na revista londrina “The Atheneum”. Visto que à época se imprimia tudo em coluna vertical, e querendo o autor pronunciar-se sobre a cultura popular, tradições, e costumes populares, houve que encontrar um termo curto que acumulasse tamanha pretensão e coubesse na largura de uma coluna. Assim nasce a palavra inglesa em que folk significa gente, ou povo, e lore significa conhecimento. Ou seja, conhecimentos do povo, ou costumes populares. É a partir daqui que tudo o que esteja relacionado com saberes antigos, tradições, costumes, superstições, se designa por folclore, ainda que depois em cada país este assuma diferentes formatos e representações. Porém, à luz do conceito inicial pode então dizer-se que o cante também é folclore, na medida em que vem de um tempo antigo, integra a tradição popular de várias comunidades e territórios e sob o qual existe um forte sentimento de pertença enquanto prática cultural bastante enraizada no povo. A principal diferença entre os grupos de cante e os grupos de folclore reside na representação. Quer-se com isto dizer que, enquanto o cante ou os grupos de cante apresentam uma tradição viva, os grupos designados de folclóricos, bastante impulsionados pelo Estado Novo, representam tradições já perdidas de um tempo antigo (finais de século XIX, princípios do século XX, na sua grande maioria).

Ainda assim, há um período em que, quer o cante, quer tais tradições hoje representadas pelos grupos de folclore, coexistiram no território nacional, fazendo parte das vivências populares de antanho. E terá sido essa uma das razões, a par de uma pretendida representatividade nacional, que em 1977, aquando da criação da Federação do Folclore Português, se convidaram grupos de cante a assumir o papel de sócios- -fundadores. Como é exemplo o Grupo Coral Os Camponeses de Pias e a que se lhe juntaram outros, posteriormente, como o Rancho de Cantadores de Vila Nova de São Bento.

Ainda que atualmente não exista qualquer grupo de cante alentejano inscrito na Federação do Folclore Português, as parcerias e intercâmbios entre estas duas tipologias de organização existe e dá continuidade a velhas práticas assumidas, quer por alguns grupos de cante, que convidam regularmente, para os seus eventos, grupos de folclore, quer por grupos de folclore que, insistentemente, procuram grupos de cante para os seus festivais de folclore. Contudo, estas parcerias entre grupos de cante e grupos de folclore são cada vez mais difíceis de acontecer ainda que, regra geral, haja interesse de ambas as partes na sua concretização. Um grupo de folclore ao convidar um grupo de cante pretende valorizar o seu festival, com uma mostra diversificada de culturas regionais, porém, para um grupo de cante que aceite ir ao Porto ou a outra região do Norte onde estão concentrados a maior parte dos grupos de folclore é uma despesa imensa que rebentaria por completo com o parco plafond de quilómetros que o município atribui anualmente a cada grupo (se é que oferece). Ainda que todos enchamos o peito de que é preciso divulgar o cante, é impossível fazê-lo, desta forma, atribuindo aos grupos apenas 1000 ou 2000 quilómetros anuais. Já para não falar de outros constrangimentos. Por outro lado, para um grupo de cante receber um grupo de folclore nos seus eventos acarreta uma despesa na alimentação imensa, pois os grupos de folclore em média são compostos por 40/50 pessoas (o equivalente a dois ou três grupos de cante). Posto isto, e perante as dificuldades, uns e outros vão tentando contornar as dificuldades e há grupos de cante que insistentemente, desde tempos antigos e ainda hoje, procuram estabelecer parcerias que permitam esses intercâmbios culturais.

Todas estas dificuldades, e outras que não cabe aqui desenvolver, estão relatadas em diversa comunicação e correspondência existente nos arquivos dos grupos de cante e onde se encontram também alguns programas de encontros de cante em que participam grupos de folclore e vice-versa. Até ao momento verifica-se que é nos grupos do concelho de Castro Verde, através do papel importantíssimo da Cortiçol, nos Arraianos de Ficalho, nos Ceifeiros de Cuba e n’Os Camponeses de Pias que se encontra muita correspondência trocada com grupos de folclore de forma regular e pertinente. Porém, sabe-se que existiram e existem outras experiências um pouco por todo o Alentejo.

Para este encontro de culturas em muito terá contribuído também o Festival Nacional de Folclore do Algarve, que durante largos anos foi transmitido na “RTP” e cuja última edição, no formato idealizado, aconteceu em 1996, cabendo ao Rancho Folclórico Fazendeiros de Montemor-o-Novo representar o Alto Alentejo e ao Grupo Coral Os Camponeses de Pias a representação do Baixo Alentejo.

Nos dias de hoje não faria sentido retomar esta boa prática?!

 

Florêncio Cacete

Coordenador do Arquivo Digital do CanteCidehus/Universidade de Évoraflorencio.cacete@uevora.pt

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