Dando cumprimento aos objetivos do Arquivo Digital do Cante, encetamos hoje este espaço que pretende trazer à luz do dia alguns dos documentos já inventariados provenientes dos arquivos dos grupos de cante. A partilha desta informação e porventura de alguns dados adicionais, pretende valorizar a história dos grupos enquanto principais prossecutores desta prática cultural, reconhecida como Património Mundial pela Unesco – O cante!
O documento em análise, nesta edição, reporta-se ao ano de 1937. A Emissora Nacional, fundada oficialmente em 1935, apesar de recente, detinha já uma forte influência na sociedade desse tempo, e muito vinculada ao Estado Novo, instituído em 1933. Não existia televisão (demoraria ainda 20 anos a surgir), e, no Alentejo, os cafés e tabernas eram os locais privilegiados de sociabilização dos homens. As casas do povo, criadas em 1933 pelo Decreto-Lei n.º 23051 de 23 de Setembro, começam a ser uma realidade em muitas freguesias, incluindo nestas terras da planura, dando corpo à politica corporativista do regime. O Grémio Alentejano, fundado em 1923, coorganizador da grande Festa Alentejana que se aborda, utilizará esta designação apenas por mais dois anos, até 1939. Altura em que passa a denominar-se de Casa do Alentejo, por força da lei que impedia aquela agremiação de utilizar a designação de Grémio. Por sua vez o Teatro São Luiz, depois de inaugurado como Teatro D. Amélia (1894), e rebatizado como Teatro da Republica em 1910, assinalava, em 1937, o 19.º ano da perda do seu grande dinamizador, o Visconde de São Luiz de Braga, em honra de quem, desde 1918, e até hoje, se designa Teatro São Luiz.
É, pois, neste contexto politico-cultural, muito resumido, que em 22 de março do ano de 1937, o Grémio Alentejano leva a efeito, com o apoio da Emissora Nacional, a Grande Festa Alentejana, no Teatro S. Luiz, cujo panfleto divulgativo, original, se encontra no Arquivo do Grupo Coral “Os Arraianos” de Vila Verde de Ficalho e também já disponível on line no Arquivo Digital do Cante. Sabe-se da existência de um outro idêntico em Mértola.
Nesta grande festa de exaltação do Alentejo em Lisboa participaram quatro ranchos corais que, curiosamente, volvidos 88 anos, ainda estão em atividade, não obstante algumas alterações de nome, por várias razões, entretanto ocorridas. Participaram então no sarau: o Rancho de Mértola, que entretanto também se terá chamado de “Esquecidos” e chegou aos dias de hoje com o nome de Grupo Coral Guadiana de Mértola; o Rancho de Vila Verde de Ficalho, que em 1940 era um grupo misto e que chegou aos dias de hoje com o nome de Grupo Coral “Os Arraianos” de Vila Verde de Ficalho; o Rancho da Vidigueira que chegou aos nossos dias com o nome de Grupo Coral “Os Vindimadores” da Vidigueira e o Rancho de Aldeia Nova de São Bento, atual Grupo Coral e Etnográfico de Vila Nova de S.Bento.
A apresentação da Festa Alentejana, tão timidamente anunciada nos jornais de Lisboa, esteve a cargo do grande poeta e escritor Manuel Ribeiro, a quem coube dirigir o espetáculo, dando inicio ao mesmo, dizendo que nenhum dos seus patrícios “perdeu – nem quer perder – as suas qualidades nativas de vigor, de ação viril e de dignidade altiva, virtudes que são timbre dos povos que para além do Tejo, na mais heróica e incruenta das batalhas, conquistaram a terra com o ferro do arado, e fizeram duma província bravia, simbolizada no brejo e na charneca, o provido celeiro da Nação”¹. Toda a apresentação foi carregada de sentimento e torneada de lirismo e romantismo, merecendo até reparos da imprensa referindo: “Uma alocução que quer sob o ponto de vista literário quer sob o ponto de vista folclórico, se pode considerar lapidar”².
Entre alocuções e intercalando com peças da orquestra sinfónica, dirigida por Luiz de Freitas Branco, os grupos interpretaram então os temas anunciados, que seria interessante não se perderem dos atuais reportórios, dado o seu valor artístico e cultural. Sobretudo neste tempo, em que se experimentam tantas e novas abordagens e se procura cruzar obras literárias da atualidade com o cante é importante salvar também esse espólio original advindo dos nossos antepassados.
Florêncio Cacete
Coordenador do Arquivo Digital do CanteCIDEHUS/Universidade de Évora
¹Revista Tradição, n.º 272, 12.º ano, 16 de abril de 1937. Págs. 14 e 15² Capa do jornal “Diário de Lisboa” n.º 5151, 16.ºano, 24 de março de 1937