Diário do Alentejo

Solidariedade: De Serpa para ajudar as vítimas do ciclone Idai

17 de maio 2019 - 17:00

Texto Bruna Soares

 

Sílvia Bentes. É este o seu nome e esta é a sua história na cidade da Beira, em Moçambique. Um mês numa missão humanitária, ao serviço da Operação Embondeiro, resultante de uma parceria entre os Médicos do Mundo e a Cruz Vermelha Portuguesa. Os relatos, na primeira pessoa, da destruição que por lá encontrou e ainda das muitas faltas de condições de sobrevivência. Mas também da resiliência do povo moçambicano e da sua resistência à dor, ao sofrimento. Um mês a ajudar quem mais precisa, mas com a certeza de que “o Mundo não está preparado para estes desastres climáticos”. E pior do que isso “não está ainda consciente de que estes serão cada vez mais frequentes e mais fortes”. O grande desafio humanitário é, por isso, em seu entender, “o de despertar consciências e deixar de fingir que este problema não é nosso e esperar que alguém faça alguma coisa”.

 

Primeiro foi uma depressão tropical, que se foi formando a leste da costa de Moçambique. Era início de março. Depois, essa mesma depressão tropical, dia após dia, foi ganhando força à medida que foi avançando e alcançou ventos até 177 quilómetros por hora e chegou a terra. Era quinta-feira, dia 14 de março.  Eis o ciclone Idai, que, por onde passou, atingiu ainda o Zimbabué e o Maláui, devastou territórios inteiros. Mais de 90 por cento da cidade da Beira, capital da província moçambicana de Sofala, ficou destruída. Contabilizaram-se centenas de mortos, por culpa do ciclone e das cheias que se seguiram. A cada dia o número oficial de vítimas, na verdade, foi sempre aumentando e chegaram também as notícias de cortes de eletricidade, de comunicações e de terras isoladas devido a cortes de estrada.

Era tudo o que Sílvia Bentes, farmacêutica, à distância, sabia. Até ao dia em que recebeu um telefonema. Serpa, Baixo Alentejo, dia 21 de março. No outro lado da linha uma pergunta: “Está disponível para partir para Moçambique”? Mais informações, pelos Médicos do Mundo, não foram adiantadas: nem data de partida, nem o tempo de duração da missão. Sílvia desligou a chamada, falou com a sua família e não tardou a retribuir o telefonema. “Sim, estou”, respondeu.

 

Partiu dia 24 de março para integrar a Operação Embondeiro por Moçambique, constituída por uma equipa de médicos, enfermeiros, farmacêutico e logísticos, resultante de uma parceria entre os Médicos do Mundo e a Cruz Vermelha Portuguesa. Aterrou na cidade da Beira. “Não tinha noção do que ia encontrar. Os danos causados pelo ciclone eram, desde logo, bem visíveis dentro do aeroporto. Estavam muitas equipas de diversas organizações internacionais ali instaladas, incluindo a Federação Internacional da Cruz Vermelha, que nos indicou o local onde iria ser instalado o nosso hospital de campanha: bairro de Macurungo, situado na periferia da cidade”, recorda.

 

Pela cidade, até lá, encontrou destruição e mais destruição e não lhe tardaram a chegar os relatos das pessoas que confirmaram a violência do que se passou. Ventos muito fortes, que varreram tudo o que apanharam à sua frente. Estradas que foram engolidas pela água e acessos, a muitos locais, apenas possíveis chegar de helicóptero ou de barco. “A cidade estava, de facto, arrancada pela raiz. Casas sem telhado, postes dobrados ao meio, casas de chapa que desapareceram, árvores tombadas, muito entulho e muito lixo e algumas zonas ainda alagadas. O caminho de terra batida até ao hospital tinha autênticas crateras, impossíveis de contornar e parecia que estávamos a navegar em mar alto”, adianta.

 

"Ao falar com as pessoas, ouvi histórias sobre as quais não consegui pronunciar uma palavra, a não ser confortar com um abraço famílias enlutadas, destroçadas, sem trabalho, sem dinheiro, sem se queixarem e sem pedirem nada, agradeciam muito a nossa ajuda, sempre”.

O hospital de campanha haveria de ser montado ao lado do Centro de Saúde de Macurungo, um bairro problemático da Beira, onde residem cerca de 36 mil habitantes. E aqui, a equipa que integrou começou por descarregar as 35 toneladas de carga que transportaram no avião e montar o hospital de raiz. “Isto acabou por unir-nos, porque não nos conhecíamos antes de partir. Todos estávamos dispostos a ajudar e gerou-se um espírito de equipa muito forte, que foi crucial para o sucesso da missão. O trabalho foi duro, mas a satisfação de ver finalmente o hospital a funcionar foi a nossa melhor recompensa”, conta agora.

 

Como farmacêutica, Sílvia Bentes ajudou, não só na gestão de stocks e organização da farmácia, como na cooperação com a equipa da farmácia do centro de saúde para o levantamento das necessidades sentidas. “Esta ligação entre as duas farmácias resultou numa união de esforços para a normal reposição de stocks, através da cedência de uma das nossas tendas como armazém para os seus medicamentos, uma vez que os pedidos mensais ao depósito central da Beira estavam suspensos desde o dia do ciclone, o que estava a criar uma situação crítica de falta de medicamentos à população”, diz.

 

Como farmacêutica ficou também responsável pela farmácia que dá resposta, não só ao próprio hospital de campanha, como aos doentes que são consultados pela equipa médica do hospital. E atendia também doentes do centro de saúde com medicamentos mais urgentes que pudessem estar em falta. Foi neste contacto direto com os doentes que viu, muitas vezes, pessoas que, naquele dia, ainda não tinham comido. “Tínhamos alguns alimentos na farmácia para dar juntamente com a medicação para que a pudessem tomar com alguma coisa no estômago”. “Como se pode dizer: tome este comprimido depois das três refeições, quando, naquele dia, aquela pessoa não tinha comido nada?”.

Farmácia, esta, que também ficou responsável pela medicação e vacinação, quer da própria equipa que integrou a missão, quer da comunidade portuguesa, através do Consulado Português na Beira.

 

Mas quem sobreviveu ao ciclone Idai, como sobrevive agora à fome, às doenças? “Essa é a situação mais preocupante e difícil de lidar. Para além das doenças e dos acidentes causados pelo ciclone, as pessoas não têm condições básicas de vida, como água potável, alimentação, uma casa com paredes e teto, trabalho. Quem tem, a chamada classe média, tem dificuldade em comprar comida porque os preços inflacionaram muito. As pessoas vêm ter connosco para nos pedir trabalho, porque não têm dinheiro e têm filhos em casa para alimentar”.

 

Há organizações no terreno responsáveis pela distribuição de alimentos, mas, de acordo com Sílvia Bentes, “também aconteceram desvios desses mantimentos, que não chegaram a quem precisava” e que depois “foram vendidos no mercado negro”.

 

Uma tragédia que, em seu entender, “a sua verdadeira dimensão nunca vai ser conhecida” e que “ultrapassa largamente os números apresentados”. “Quando tive oportunidade de ir a Lamego e a Nhamatanda, a 100 quilómetros da Beira, fiquei com uma noção muito maior da dimensão e da força deste ciclone, algumas pessoas mostraram-nos até onde chegou o nível das águas e muitas pessoas tiveram que sair a nado, outras foram arrastadas na corrente e quase todas perderam mais do que um membro da família. Ainda aparecem corpos nas margens do rio”, dispara.

 

É por isso que, segundo diz, a “recuperação não será fácil, apesar de todas as ajudas vindas de todo o Mundo”. “A recuperação da cidade e do quotidiano das pessoas vai acontecendo, mas a recuperação de um país, em que reina a corrupção e em que seja possível, democraticamente, lutar por justiça social e depender cada vez menos da caridade, vai demorar décadas. É muito triste que, em situação de catástrofe, haja quem aproveite para fazer dinheiro”. Até porque a cidade da Beira “está muito destruída, com muitos destroços ainda nas ruas e faltam condições de higiene”. A água, essa, não é potável, a luz e as comunicações são intermitentes. “As escolas voltaram a funcionar, apesar de não terem teto, o centro de saúde e a maternidade também, apesar de ter assistido um parto com a lanterna do meu telemóvel. O lixo é queimado a céu aberto. O que percebemos é que a cidade da Beira já tinha problemas de degradação antes do ciclone, depois da sua passagem a situação piorou drasticamente”, considera.

“Nunca tinha visto tanta resistência à dor e ao sofrimento físico nas pessoas que sofreram acidentes decorrentes do ciclone e que chegavam à cirurgia do hospital de campanha, semanas depois, com os pés quase gangrenados, cortes profundos na cabeça, situações muito graves, que felizmente em quase todos os casos foi possível tratar e salvar aquela vida". 

O Mundo não está preparado para estes desastres climáticos e pior do que isso não está ainda consciente de que estes serão cada vez mais frequentes e mais fortes”, afirma a farmacêutica, sem hesitação. Recorde-se que a porta-voz da Organização Meteorológica Mundial, Claire Nullis, defendeu que este ciclone pode ser “o pior desastre relacionado com o clima do hemisfério Sul”.

 

“Curiosamente, poucos dias antes de partir, a 15 de março, participei com os meus filhos e colegas da escola na Greve Climática Estudantil, que aconteceu em Lisboa e simultaneamente noutros pontos do País e do Mundo, impulsionado pelo movimento #FridaysForFuture da Greta Thunberg, em que cerca de 20 mil estudantes em Portugal lutaram pela justiça climática. No próximo dia 24 de maio, irá realizar-se uma nova greve, considero muito importante que as famílias, a escola, as entidades locais apoiem os jovens nesta causa. É o futuro que está em jogo”, argumenta. Até porque, como diz, “nenhum país está preparado para uma catástrofe natural, os países mais pobres menos ainda, ficam numa situação de total fragilidade, quer a nível social quer a nível de condições de saúde, com o aparecimento de surtos como o da cólera”.

 

O Mundo, para Sílvia Bentes, tem, assim, um enorme desafio humanitário entre mãos. “O de despertar consciências e deixar de fingir que este problema não é nosso e esperar que alguém faça alguma coisa”. É, segundo defende, “o desafio de pensar mais no coletivo e ser menos individualista. É o desafio gigante de quebrar o ciclo do consumismo e de manter as pessoas distraídas. É preciso parar para pensar e mudar comportamentos, o que demora muito tempo, a menos que já não se tenha nada a perder”.

 

Sílvia Bentes regressou de Moçambique um mês depois. Chegou a Serpa no passado dia 24. “Nunca tinha visto tanta resistência à dor e ao sofrimento físico nas pessoas que sofreram acidentes decorrentes do ciclone e que chegavam à cirurgia do hospital de campanha, semanas depois, com os pés quase gangrenados, cortes profundos na cabeça, situações muito graves, que felizmente em quase todos os casos foi possível tratar e salvar aquela vida. As mulheres em trabalho de parto gemem em silêncio, não se ouvem gritos, não há epidural, nem cesarianas, parem e saem pelo próprio pé poucas horas depois.

 

Ao falar com as pessoas, ouvi histórias sobre as quais não consegui pronunciar uma palavra, a não ser confortar com um abraço famílias enlutadas, destroçadas, sem trabalho, sem dinheiro, sem se queixarem e sem pedirem nada, agradeciam muito a nossa ajuda, sempre”, descreve agora. Mas trouxe também de Moçambique “os sorrisos, principalmente das crianças, a alegria constante, as brincadeiras e as danças, apesar de tantas carências e de tantos problemas” e ainda “a certeza de que é possível ser feliz com pouco e que todos merecem viver com dignidade”. E uma conclusão: “A solidariedade entre os povos tem que ir além das situações de catástrofe”.

 

SÍLVIA BENTES Nasceu a 5 de março de 1970, na Torre da Marinha, Seixal. Estudou Ciências Farmacêuticas. Está a viver em Serpa desde 2002. Antes esteve a viver nos Açores. É casada e tem seis filhos. Trabalha na Farmácia Santiago Maior, em Alandroal, desde 2009. Esta foi a primeira vez que participou numa missão humanitária. “Costumo resumir a minha biografia numa frase de Mário-Henrique Leiria: a 5 de março de 1970 nasci, ‘tudo o que aconteceu depois foi consequência disso mesmo’”.

 

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