O hospital de campanha haveria de ser montado ao lado do Centro de Saúde de Macurungo, um bairro problemático da Beira, onde residem cerca de 36 mil habitantes. E aqui, a equipa que integrou começou por descarregar as 35 toneladas de carga que transportaram no avião e montar o hospital de raiz. “Isto acabou por unir-nos, porque não nos conhecíamos antes de partir. Todos estávamos dispostos a ajudar e gerou-se um espírito de equipa muito forte, que foi crucial para o sucesso da missão. O trabalho foi duro, mas a satisfação de ver finalmente o hospital a funcionar foi a nossa melhor recompensa”, conta agora.
Como farmacêutica, Sílvia Bentes ajudou, não só na gestão de stocks e organização da farmácia, como na cooperação com a equipa da farmácia do centro de saúde para o levantamento das necessidades sentidas. “Esta ligação entre as duas farmácias resultou numa união de esforços para a normal reposição de stocks, através da cedência de uma das nossas tendas como armazém para os seus medicamentos, uma vez que os pedidos mensais ao depósito central da Beira estavam suspensos desde o dia do ciclone, o que estava a criar uma situação crítica de falta de medicamentos à população”, diz.
Como farmacêutica ficou também responsável pela farmácia que dá resposta, não só ao próprio hospital de campanha, como aos doentes que são consultados pela equipa médica do hospital. E atendia também doentes do centro de saúde com medicamentos mais urgentes que pudessem estar em falta. Foi neste contacto direto com os doentes que viu, muitas vezes, pessoas que, naquele dia, ainda não tinham comido. “Tínhamos alguns alimentos na farmácia para dar juntamente com a medicação para que a pudessem tomar com alguma coisa no estômago”. “Como se pode dizer: tome este comprimido depois das três refeições, quando, naquele dia, aquela pessoa não tinha comido nada?”.
Farmácia, esta, que também ficou responsável pela medicação e vacinação, quer da própria equipa que integrou a missão, quer da comunidade portuguesa, através do Consulado Português na Beira.
Mas quem sobreviveu ao ciclone Idai, como sobrevive agora à fome, às doenças? “Essa é a situação mais preocupante e difícil de lidar. Para além das doenças e dos acidentes causados pelo ciclone, as pessoas não têm condições básicas de vida, como água potável, alimentação, uma casa com paredes e teto, trabalho. Quem tem, a chamada classe média, tem dificuldade em comprar comida porque os preços inflacionaram muito. As pessoas vêm ter connosco para nos pedir trabalho, porque não têm dinheiro e têm filhos em casa para alimentar”.
Há organizações no terreno responsáveis pela distribuição de alimentos, mas, de acordo com Sílvia Bentes, “também aconteceram desvios desses mantimentos, que não chegaram a quem precisava” e que depois “foram vendidos no mercado negro”.
Uma tragédia que, em seu entender, “a sua verdadeira dimensão nunca vai ser conhecida” e que “ultrapassa largamente os números apresentados”. “Quando tive oportunidade de ir a Lamego e a Nhamatanda, a 100 quilómetros da Beira, fiquei com uma noção muito maior da dimensão e da força deste ciclone, algumas pessoas mostraram-nos até onde chegou o nível das águas e muitas pessoas tiveram que sair a nado, outras foram arrastadas na corrente e quase todas perderam mais do que um membro da família. Ainda aparecem corpos nas margens do rio”, dispara.
É por isso que, segundo diz, a “recuperação não será fácil, apesar de todas as ajudas vindas de todo o Mundo”. “A recuperação da cidade e do quotidiano das pessoas vai acontecendo, mas a recuperação de um país, em que reina a corrupção e em que seja possível, democraticamente, lutar por justiça social e depender cada vez menos da caridade, vai demorar décadas. É muito triste que, em situação de catástrofe, haja quem aproveite para fazer dinheiro”. Até porque a cidade da Beira “está muito destruída, com muitos destroços ainda nas ruas e faltam condições de higiene”. A água, essa, não é potável, a luz e as comunicações são intermitentes. “As escolas voltaram a funcionar, apesar de não terem teto, o centro de saúde e a maternidade também, apesar de ter assistido um parto com a lanterna do meu telemóvel. O lixo é queimado a céu aberto. O que percebemos é que a cidade da Beira já tinha problemas de degradação antes do ciclone, depois da sua passagem a situação piorou drasticamente”, considera.