O caminho rural que liga Ferreira do Alentejo e Figueira dos Cavaleiros, conhecido como estrada do Cardim, tem sido, nos últimos 11 meses, cada vez mais utilizado por tratores, carrinhas agrícolas, camiões industriais e veículos, como forma de evitar as obras do IP8. No último ano registaram-se sete acidentes nessa via, mas desconhece-se qual a entidade responsável pela manutenção e conservação da mesma.
Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa Foto | Ricardo Zambujo
Sentados em duas cadeiras à sombra do beirado de uma casa, António Santana e João do Monte veem passar os poucos carros que, àquela hora da manhã, circulam na rua de Lisboa, na localidade de Figueira dos Cavaleiros. Sob o olhar atento da mulher de João e de uma vizinha, cumprimentam quem vai em direção ao supermercado ou quem sai da pastelaria ao lado. De boina na cabeça põem a conversa em dia. O acidente ocorrido há poucos dias na estrada rural que liga a aldeia a Ferreira do Alentejo, sede de concelho, é um dos temas principais, mas não os surpreende. “Esta estrada sempre existiu, mas era de terra batida. Quando fizeram os canais, alcatroaram-na, mas fizeram-na tal e qual como ela era, não a endireitaram nem nada e aquela ponte... já não sei se são seis ou sete as pessoas que chegaram lá e morreram”, diz, ao “Diário do Alentejo” (“DA”), António Santana.Os acidentes, segundo Gertrudes Ruivo, mulher de João do Monte, são “recorrentes” e não são novidade para quem vive em Figueira dos Cavaleiros. “Não há vez nenhuma que nós não passemos e não nos lembremos de tudo o que já aconteceu lá”, lamenta, dizendo, de seguida, que o último a que o marido assistiu “foi há 10 anos”, com um casal que não conhecia a estrada do Cardim.“O que me dizem agora é que o GPS está a mandar as pessoas por lá por causa da obra [do Itinerário Principal (IP) 8] e compreendo, porque no outro dia quando vinha de Beja apanhámos quatro sinais de 10 minutos, ou seja, demoramos mais de 40 a chegar”, reforça António Santana.Os dois amigos, apesar de reconhecerem que “aquilo é perigoso”, admitem que, ainda antes do início das obras no IP8, em janeiro deste ano, a estrada rural sempre foi muito utilizada por quem vive na aldeia por ser menos movimentada. “Eu, por exemplo, vou sempre por ali, porque para mim [aquela estrada] tem menos movimento e eu como tenho uma certa dificuldade [em conduzir] vou por ali”, diz João do Monte.O conterrâneo corrobora a informação e conta que ainda nessa manhã, quando ia “fazer uns exames a Ferreira”, utilizou a estrada do Cardim e apanhou “um susto”. “A estrada é estreita e não está marcada, estava nevoeiro, foi por um triz. O outro é que parou no meio da estrada, porque se não vinha mesmo de frente e era de caras”, descreve António Santana.Entre um cumprimento e outro a quem passa na rua, e antes de o “DA” deixar a aldeia em direção ao local do incidente, António Santana e João do Monte afirmam que a obra de alcatroamento e de instalação dos canais foi “mal estruturada” e que “não tem nexo nenhum”. “Aquilo começou a ser alcatroado quando a EDIA [Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva] tomou conta do regadio, mas agora não sei quem é que dá conservação à estrada. Não sei se é a câmara municipal ou se é a EDIA, agora se a EDIA é que fez a ponte devia ter um bocadinho de responsabilidade por ela”, defende João do Monte.Por sua vez, António Santana é perentório e garante que “devia haver alguém, a câmara municipal ou assim, que deitasse mão naquilo”, porque “já caiu lá uma grande quantidade de pessoas e muitas já morreram ali”. Segundo os dados divulgados pelo Comando Territorial da Guarda Nacional Republicana (GNR) de Beja ao “DA”, no último ano, e até ao passado dia 3, registaram-se “sete acidentes, nomeadamente, dois despistes com capotamento, dois despistes simples, duas colisões e um atropelamento de javali”. Destas ocorrências resultaram “quatro feridos leves e uma vítima mortal”, esta última registada no passado dia 31 de outubro. Paralelamente, segundo a GNR de Beja, na estrada do Cardim, na última década, verificou-se um acidente com despiste em 2022, do qual também resultou uma vítima mortal.
O empurrar de responsabilidades O sinal de perigo, colocado a poucos metros da curva que antecede a ponte no sentido Ferreira do Alentejo para Figueira dos Cavaleiros, antevê a sinuosidade do trajeto. Para além da reduzida largura da via e da inexistência de marcação, a pouca visibilidade entre curvas, resultado do olival superintensivo que a rodeia, afeta, ainda mais, quem a utiliza. As marcas de embate numa das baias refletoras, assim como no pontão, e os destroços do último acidente, são um reflexo da “armadilha”, como António Santana e João do Monte apelidam, da estrada do Cardim. De olhos postos no canal, com pouco mais de um metro de água, João Pedro Marques e Jorge Favinha, trabalhadores da Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, conversam sobre o recente acidente. Sem compreenderem como é que aconteceu, tendo em conta que a vítima mortal “conhecia bem a estrada”, debatem possíveis causas e apontam direções.“Tem havido aqui mais acidentes, porque esta estrada começou a ter mais movimento por causa das obras, mas...”, diz João Pedro Marques. Antigamente, conforme conta Jorge Favinha, a estrada do Cardim servia “só para a agricultura” ou “quando o pessoal ia sair à noite para a vila e voltava por aqui porque não havia guarda”, mas “agora tem mais movimento por causa das obras”.Para além da utilização da via por tratores e carrinhas 4x4 de empresas agrícolas, a estrada tem sido, nos últimos meses, alvo de um aumento incomum de tráfego, nomeadamente, de camiões industriais de mercadoria e combustíveis, veículos municipais e carros que evitam o IP8.“Por exemplo, quando vou para Santa Margarida do Sado [pelo IP8] há um percurso entre semáforos que é muito comprido e com este veículo pesado acontece-me ir a meio [do troço] e os carros começarem a vir de frente. Assim, prefiro vir por aqui”, realça Jorge Favinha. Enquanto esperam pelo “chefe”, os funcionários municipais desabafam com o “DA” que “quando fizeram isto podiam ter feito um pontão mais largo” que salvaguardasse “desgraças” futuras, mas que está na hora de “tentar remediar a situação”.“Costuma dizer-se que ‘casa arrombada, trancas à porta’, por isso, vamos colocar aqui nesta zona uns blocos de cimento para tentar minimizar as coisas”, justifica João Pedro Marques, sendo completado pelo seu colega: “Podiam também pintá-los com um refletor, porque à noite não há luz e assim corre-se o risco de não caírem lá para dentro [do canal], mas de baterem nisto”.
As diferentes perspetivas Em declarações ao “DA”, o presidente da Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo, Luís Pita Ameixa, confirma a colocação dos blocos, mas assegura que “a estrada não é municipal” e que apenas os colocou para que esta tenha “menos perigosidade”.“A câmara, através da proteção civil municipal, por causa da perigosidade, implantou sinalização nos dois lados daquela ponte e agora, em colaboração com a Aboro [Associação de Beneficiários da Obra de Rega de Odivelas], colocou uns pilares de cimento, ainda que esta não tivesse qualquer obrigação”, salienta.Segundo o edil, a situação há algum tempo que está a ser analisada pela autarquia e, por isso, depois de receber “algumas reclamações” a situação foi exposta à Aboro, entidade que gere os terrenos circundantes à estrada.“A Aboro disse que a responsabilidade era do Ministério da Agricultura e Mar e a câmara deu-lhes conhecimento e solicitou a sua intervenção. A certa altura o ministério pediu alguns esclarecimentos, sobretudo, sobre a sua localização, e a câmara enviou também uma proposta técnica de intervenção”, explica, assumindo, de seguida, que vão continuar a “chamar a atenção” da tutela, visto que, “aparentemente, a estrada está sob o seu domínio”.Por sua vez, o presidente da Aboro confirma ao “DA” esta informação. Segundo Manuel Reis, em 2006/2007 a EDIA entregou “essa obra toda, a parte que construiu,” à Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (Dgadr) que, por sua vez, “fez um contrato de concessão da rede de rega de todo o aproveitamento hidroagrícola, exceto as redes viárias, com a Aboro”.“Eu já fazia parte da Aboro na altura e acompanhei tudo, sei perfeitamente como tudo foi. Dizer que aquela estrada não é de ninguém não é verdade, [porque] aquela estrada foi entregue pela EDIA à Dgadr”, assegura. E acrescenta: “A EDIA tem a obrigação de saber disto tudo, pode não saber se a Dgadr entregou depois a alguém, mas tem de saber que eles entregaram à Dgadr. Agora, não podem vir dizer que o caminho não é de ninguém, até porque a EDIA não alcatroaria uma via que não é de ninguém”, remata.Contactado pelo “DA”, a EDIA, em comunicado conjunto com o Ministério da Agricultura e Mar, afirma que “o caminho em causa não é uma estrada, mas sim um caminho vicinal existente há várias décadas e identificado nas cartas militares”, e que “este caminho de serviço tem como finalidade assegurar a circulação de veículos e maquinaria agrícola entre vias principais e secundárias do aproveitamento hidroagrícola”.“Durante as obras de implementação do sistema de regadio coletivo, a EDIA procedeu apenas a melhorias complementares em alguns caminhos existentes com o objetivo de facilitar o acesso agrícola. Essas intervenções não alteraram a classificação original dos caminhos”, refere a EDIA em comunicado.Desta forma, prossegue, a “legislação em vigor” atribui “a responsabilidade pela conservação e manutenção deste tipo de vias” às “juntas de freguesia, não sendo, portanto, da competência do Ministério da Agricultura e Mar”.Ainda assim, segundo adiantam, “o percurso em causa inclui uma curva e contracurva devidamente sinalizadas, em ambos os sentidos, com sinais verticais de perigo e baias refletoras junto ao pontão sobre o canal”, ou seja, “sinalização adequada ao tipo de trânsito agrícola e às condições de via, caracterizada por baixo volume e velocidade reduzida”. O atual presidente da Junta de Freguesia de Figueira dos Cavaleiros, José Baltazar Duarte, que tomou posse no passado dia 28 de outubro, diz que tem conhecimento da situação, mas que face ao seu curto espaço temporal à frente da autarquia “não tem informações necessárias” para prestar declarações quanto às entidades responsáveis pela via. “Acho estranho pertencer à junta de freguesia, mas não consigo dar mais informações”, admite.