Diário do Alentejo

Língua azul “grassa com violência” no Baixo Alentejo

07 de novembro 2025 - 08:00
Vacinas não têm tido “o efeito preventivo pretendido, nem a cobertura populacional desejada”
Foto | Ricardo ZambujoFoto | Ricardo Zambujo

Devido ao ressurgimento de um novo surto de língua azul, que vem, novamente, afetando efetivos pecuários na região, a Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo enviou uma carta ao ministro da Agricultura e Mar, revelando as preocupações dos produtores, face ao aparecimento da doença pelo segundo ano consecutivo, e manifestando as diligências e os apoios que, de acordo com a federação, se tornam urgentes tomar. No âmbito desta questão, também os deputados do PSD e do PS, eleitos por Beja, questionaram no Parlamento o governante com a pasta da Agricultura.

 

Texto José Serrano

 

A preocupação causada pelo surgimento de “novos e graves episódios” da doença da língua azul, “disseminados por todo o território continental, afetando ovinos e caprinos”, de acordo com a Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (Faaba), levou ao recente envio, por parte desta entidade, de uma carta endereçada ao ministro da Agricultura e Mar. O documento refere que a presença da doença na área de influência da Faaba “grassa com violência”, nomeadamente, nas zonas do “Campo Branco” (Almodôvar, Aljustrel, Ourique e Castro Verde) menos afetadas em 2024, não se deixando, no entanto, de se observar a manifestação da patologia, “de forma significativa”, nos efetivos dos restantes concelhos do Baixo Alentejo, mais atacados no mesmo período – ainda que estes tenham adquirido, através do contacto com o vírus, alguma “imunidade natural”, esta revela-se insuficiente para resistir à patologia. Esta circunstância, da reincidência da febre catarral ovina, apreensivamente expressa na missiva enviada ao gabinete ministerial – “constatamos, desde os últimos dias de agosto e até à presente data, um aumento sustentado do número de ovinos e caprinos mortos nas explorações, sendo atualmente este número cerca de três vezes superior ao esperado para esta época do ano” –, é esclarecida, por Miguel Madeira, médico veterinário, coordenador do Agrupamento de Defesa Sanitária (ADS) da Associação de Agricultores do Sul (ACOS). “Esta doença não é nova para nós, há língua azul no País desde 2004. A novidade é o aparecimento de novas variantes do vírus, tendo o serotipo 3 aparecido, pela primeira vez, no ano passado (e agora reaparecido em força), e o serotipo 8, que sabíamos circular no norte da África e no Médio Oriente, a surgir aqui neste ano, ambos a causar danos fortíssimos”, refere o veterinário. Danos que se manifestam através da mortalidade e de morbilidades várias, em animais adultos e jovens, da quebra de produção de leite e de abortos em várias fases da gestação, consequente de uma doença para a qual as “vacinas autorizadas para estes serotipos”, que não têm tido “nem o efeito preventivo pretendido, nem a cobertura populacional desejada”, se encontram “frequentemente indisponíveis no mercado”, factos que se deverão “analisar e corrigir com brevidade”, pode ler-se no documento. “Estas vacinas são produzidas na Europa, por três laboratórios, dois em Espanha e um na Alemanha, que não têm ‘mãos a medir’, uma vez que este problema, para além de estar presente em todos os países do arco mediterrânico, já se encontra no Norte da Europa, por força das alterações climáticas” – o aumento das temperaturas propicia a transmissão do vírus –, “com casos da doença detetados na Suécia, algo impensável de, há 20 anos, se poder equacionar como possível”, sublinha Miguel Madeira. Dessa forma, e ainda que “as condições climatéricas”, na região, se mantenham “favoráveis à persistência do inseto que transmite a doença”, antevê-se que “a sua presença e, consequentemente, a disseminação da enfermidade, diminuam ao longo do mês de novembro, com a esperada chegada do frio”, refere o texto. Relativamente à vacinação, frisando Miguel Madeira a dificuldade de se vacinarem os rebanhos com o serotipo 8 – “a vacina levou muito tempo a ser disponibilizada, havendo efetivos que só agora a estão a receber, sendo que, desejavelmente, deveria ter ocorrido entre os meses de maio e, o mais tardar, agosto” –, o veterinário apela, para além da inclusão, nos planos de ajuda e de vacinação, dos caprinos, “também muito afetados pela doença”, à urgente criação de um banco de vacinas, referindo que existem, atualmente, regras que não são estimulantes à sua constituição. “Uma das regras diz-nos que se os ADS não utilizarem, pelo menos, 80 por cento das vacinas [que lhes são disponibilizadas] têm penalizações, ou seja, têm de pagar as vacinas que sobram. E havendo ADS, por este país fora, que não têm capacidades financeiras para assumirem esse risco, [muitos há que] adquirem estritamente as vacinas encomendadas pelos produtores – sabendo nós que este tipo de doenças vetoriais [transmitidas através da picada de inseto] ‘explodem’ de um momento para o outro, talvez esta não seja a metodologia mais indicada”. Desta forma, reitera o veterinário, é imprescindível existir, como forma de segurança, uma reserva de vacinas – “que se não forem necessárias utilizar neste ano, utilizar-se-ão para o ano que vem”. Para isso acontecer, diz, há que haver “um respaldo diferente por parte do Ministério da Agricultura”, deixando de colocar determinadas “restrições à utilização” da vacina. “É importante que essa reflexão se faça brevemente, pois temos de começar a preparar a campanha de 2026, e essa campanha tem de começar, o mais tardar, em maio. Temos de pôr ‘mãos à obra’”, acentua. A carta endereçada a José Manuel Fernandes, que realça “os enormes prejuízos que os produtores estão a enfrentar”, agravados “por serem cumulativos com os do ano anterior”, não tendo estes sido, “longe disso, compensados pelas ajudas disponibilizadas”, transmite a urgência de “atribuir novos apoios aos produtores de ovinos e caprinos afetados”, os quais deverão ser “disponibilizados de forma atempada”. Está agora “nas mãos do ministério”, em conjunto com as organizações representativas dos produtores de pequenos ruminantes, “encontrar soluções que contribuam para travar – ou mesmo inverter – o definhamento destes sectores”, refere a Faaba, reafirmando esta entidade “a sua total disponibilidade para participar ativamente neste processo, que deverá integrar sempre a adoção de uma nova abordagem à prevenção e controlo da doença da língua azul”.

 

As questões na Assembleia da República

Relativamente a esta questão, o deputado do PSD eleito por Beja, Gonçalo Valente, interpelou, nesta semana, José Manuel Fernandes, na audição do ministro da Agricultura e Mar, durante a apreciação, na especialidade, do Orçamento do Estado para 2026, referindo a necessidade, no âmbito deste novo surto da doença, de “os agricultores serem ajudados”, questionando, ainda, o governante acerca dos sistemas de monitorização e mecanismos de prevenção adotados pelo Governo. De igual forma, na mesma audição, Pedro do Carmo, deputado do PS eleito por Beja, referiu a necessidade da atribuição de apoios que permitam aos produtores pecuários “repor o efetivo das explorações”, considerando, na sua interpelação, que “o processo de vacinação não resolve tudo, pois deixa em aberto problemas graves”. Em resposta, José Manuel Fernandes aludiu à diminuição da doença em cerca de 95 por cento – “até 30 de outubro [deste ano] tínhamos 2647 ovinos notificados com língua azul e isto não tem comparação com 2024, em que tivemos 47 mil” –, e ao aumento da taxa de vacinação, estando, a 31 de janeiro, 278 mil ovinos vacinados e, “hoje, mais de um milhão e 270 mil”. O ministro referiu, também, o reforço financeiro das Organizações de Produtores para a Sanidade Animal, “que ficam com um montante potencial de 12 milhões de euros para compras de vacinas, serotipo 3 e 8”, e a verba “de 10 milhões de euros”, conseguida através da “reprogramação do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]”, destinada a “armadilhas, onde temos inteligência artificial para a deteção de vetores, para podermos atuar rapidamente”. Neste contexto, José Manuel Fernandes frisou não existir na União Europeia nenhum país que, “neste domínio, faça o que nós fazemos, pagando as vacinas e dando indeminizações”. “Arranjem-me um estado-membro que faça esse apoio a partir do Orçamento do Estado”, enfatizou, em jeito de desafio, o ministro.

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