Diário do Alentejo

Santa Casa da Misericórdia de Beja debateu acolhimento migrante

29 de junho 2024 - 08:00
Dia Mundial do Refugiado assinalou-se a 20 deste mês
Ilustração | Susa Monteiro/ArquivoIlustração | Susa Monteiro/Arquivo

Maria, Nata e Carlos deixaram os seus países nos últimos anos. Cada um fê-lo por um motivo diferente e, por isso, estão em Portugal também com estatutos distintos. Embora as suas histórias pareçam, à partida, desiguais, têm em comum o facto de serem “estrangeiros”, com sonhos e vontade de recomeçar. Na segunda-feira, dia 24, deram a cara e contaram o seu processo de acolhimento no evento “Somos todos estrangeiros”, promovido pela Santa Casa da Misericórdia de Beja.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

 

Maria tem 18 anos e nasceu na Síria, porém, lembra-se pouco do seu país. Aos dois anos, conta num português mesclado, “saiu” com os pais para o Egito na tentativa de “fugir à guerra”. Ainda que não tenha tido noção, na ocasião, de todo o processo, sabe, pelo que ouviu dos pais, que o mais difícil foi “obter os documentos” necessários “o mais rapidamente possível” para conseguir entrar naquele país. A 28 de agosto de 2023 a família tomou, novamente, a decisão de “sair”, entrando em Portugal com o estatuto de refugiada. A fazer quase um ano desde que vive em solo português, mais precisamente, em Beja, e apesar de o seu português ser bastante percetível, diz, sem hesitar, que a sua maior dificuldade tem sido a língua e, consequentemente, a escola, uma vez que até então apenas falava árabe e “muito pouco” inglês.

O mesmo entrave encontrou Nata. Natural da Geórgia deixou o seu país em setembro de 2021, para “melhorar o futuro” dos seus filhos, visto que estes jogam futebol e Portugal, segundo o marido, “tem as melhores escolas de futebol do mundo”. Para trás deixou a sua carreira de obstetra e ginecologista. Chegada a Portugal, com o suporte, também, do pai imigrado no país há 23 anos, trabalhou “duas semanas no campo” e, mais tarde, dois anos como auxiliar de saúde num lar da cidade. “Quando cheguei foi muito difícil, mas se nós quisermos fazer qualquer coisa esforçamo-nos e fazemos”, diz.

Hoje, ao fim de três anos, garante que o intuito é permanecer definitivamente e insistir nos sonhos da família. “O meu objetivo no futuro é continuar aqui com a minha carreira de medicina e, por isso, comecei agora a fazer um estágio no hospital. Assim, devagarinho, acho que posso fazer tudo”, reforça perante o auditório.

Na cadeira ao lado, e com a mesma intenção de permanecer, está Carlos. Conta que estava de férias em Lisboa com a mulher e o filho quando souberam que na Colômbia, o seu país de origem, era procurado “por ter visto o que não devia” e que, por esse motivo, não poderiam regressar.

“A nossa vizinha [na Colômbia] informou-nos que havia pessoas não muito boas que nos procuravam em casa e que [se voltássemos] teríamos problemas de segurança, [porque] envolvia a polícia e alguns corruptos. Então não temos a possibilidade de voltar para a Colômbia. Deixámos tudo. Deixámos a nossa casa, a nossa vizinha, a nossa família, o ateliê da minha esposa...”, refere.

Pediram de imediato o estatuto de proteção internacional e desde o dia em que fecharam a porta de casa para umas pequenas férias em família que esta está “abandonada”. No país sul-americano deixaram ainda as suas carreiras de programador informático e desenhadora gráfica, assim como uma pastelaria. A viver na vila de Cuba “há algum tempo”, Carlos ambiciona agora “arranjar casa” em Beja e normalizar a sua vida, assim como terminar o projeto de realidade virtual que está a desenvolver na Câmara Municipal de Cuba e abrir uma nova pastelaria no Mercado Municipal de Beja.

Foram estas as histórias que serviram de mote à primeira parte de testemunhos de “Somos todos estrangeiros”, um evento promovido pela Santa Casa da Misericórdia de Beja que pretendeu celebrar o Dia Mundial do Refugiado, “sensibilizar a comunidade para a causa dos refugiados”, “promover a inclusão social” e debater sobre os atuais desafios das instituições de acolhimento.

De entre os tópicos abordados, os representantes das instituições e entidades sociais presentes – Cáritas Diocesana de Beja, Santa Casa da Misericórdia de Beja, Centro Distrital de Beja do Instituto da Segurança Social e Comando Distrital de Beja da PSP, entre outras – garantiram que, atualmente, as principais dificuldades no acolhimento de migrantes são a barreira linguística, a diferença cultural e legislativa, o desconhecimento do apoio e do trabalho desenvolvido pelas organizações sociais, a burocracia nos processos de regularização, o tipo de preparação que é feito com as pessoas com estatuto de refugiado, em que “não lhes é dito que têm um caminho a percorrer quando entram no país”, a forma como os profissionais lidam com “as expectativas de quem vem”, o défice habitacional que existe na região e a débil integração no mercado de trabalho.

“Acho que um dos principais desafios do Estado é a sua capacidade de se organizar em função do cidadão. Acho que isso se sente, obviamente, não só quando falamos de proteção internacional, quando falamos de migrações, quando falamos de apoio, mas acho que todos nós sentimos um bocadinho isso, que o Estado não está organizado em função daquelas que são as nossas necessidades e que somos nós, cidadãos, que, bem ou mal, temos de andar de um lado para o outro a tentar resolver os nossos problemas. E esse é claramente um desafio futuro que se impõe”, sintetizou, no final da conferência, Sérgio Fernandes, diretor-geral do Centro Distrital de Beja do Instituto da Segurança Social.

O evento contou ainda com o espetáculo musical “Acordes do mundo: Ecos de cultura” e com uma mostra gastronómica. Os deputados Nelson Brito (PS) e Diva Ribeiro (Chega), o vereador sem pelouro da Câmara Municipal de Beja, Nuno Palma Ferro, e o presidente da União de Freguesias de Beja, Salvador e Santa Maria da Feira, António Ramos, também marcaram presença.

Comentários