Diário do Alentejo

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16 de junho 2024 - 08:00
Presidente da junta considera que Plano de Ação para as Migrações poderá fazer “alguma coisa para mudar o rumo do País em relação à imigração”

Desde o início do ano a Junta de Freguesia de Beringel, no concelho de Beja, já emitiu 300 atestados de residência a imigrantes, um dos documentos necessários até agora para o processo de regularização, sendo que “100 foram, muito provavelmente, só no último mês”. Numa população de 1500 habitantes, os estrangeiros representam já perto de um quinto, muitos deles sem qualquer ocupação. O presidente da autarquia, Vítor Besugo, considera que o Plano de Ação para as Migrações, apresentado na semana passada pelo Governo, poderá fazer “alguma coisa para mudar o rumo do País em relação à imigração”.

 

Texto  Nélia Pedrosa  Fotos Ricardo Zambujo

 

É quinta-feira, pouco passa das 18 horas e no largo Dr. Carlos Moreira – usualmente apelidado de “Rossio” –, onde “há um ano” era frequente ver, depois de um dia de trabalho, pais com crianças a brincarem no novo parque infantil, avistam-se agora grupos de jovens adultos, na sua grande maioria oriundos da Índia, em menor número do Paquistão e do Nepal, sentados na relva ou nos bancos de jardim de cimento, bebendo cerveja e de telemóvel na mão. “Quem trabalha chega a esta hora [à praça para socializar], quem não tem trabalho passa aqui os dias a consumir bebidas alcoólicas e a sujar” ou anda “por aí”, sublinha o presidente da Junta de Freguesia de Beringel (Beja) ao “Diário do Alentejo”. À noite, ao fim de semana e aos feriados, acrescenta Vítor Besugo, a concentração de imigrantes tende a aumentar significativamente, o que faz com que os locais “tenham deixado de ir ao ‘Rossio’, com receio, “porque eles estão alcoolizados e metem-se com as pessoas”. Segundo o autarca, desde o início do ano, a junta já emitiu 300 atestados de residência a imigrantes – um dos documentos necessários até agora para o processo de regularização –, sendo que “100 foram, muito provavelmente, só no último mês”. Numa população de 1500 habitantes, os imigrantes representam já perto de um quinto.

No início da semana passada, depois de o Governo ter apresentado o Plano de Ação para as Migrações, que visa, segundo o mesmo, “corrigir os graves problemas nas regras de entrada em Portugal, resolver a incapacidade operacional da AIMA [a nova Agência para a Integração, Migrações e Asilo] e assegurar a operacionalidade dos sistemas de controlo de fronteiras”, Vítor Besugo fez uma publicação na rede social Facebook, em “jeito de desabafo, mas também de alerta”, a manifestar a sua satisfação por, “finalmente”, se fazer “alguma coisa para mudar o rumo do País em relação à imigração”. “Quando vi aquela alteração à lei [a obrigatoriedade de os imigrantes terem visto de trabalho antes de entrarem em Portugal], achei que foi uma medida bem tomada – apesar de não ser do meu partido –, porque é algo que pode mudar um pouco esta realidade. Eu sou candidato pelo Partido Socialista, mas eleito pelo povo de Beringel e o que eu manifesto é a revolta do povo. Sou o seu porta-voz. A toda a hora as pessoas estão a ir à junta mostrar o seu descontentamento, a sua preocupação. Os imigrantes chegam sem qualquer controlo e alguma coisa tem de ser feita. Esta obrigatoriedade de terem contrato de trabalho faz com que venham, trabalhem e façam a sua vida”, contrariamente ao que acontece atualmente, frisa, em que, por exemplo, “há trabalho para três, mas vêm 12” e “vão rodando”. “Uma semana trabalham três, noutra semana outros três, noutra outros três e assim [sucessivamente], sendo que todos vão pagando a casa e em vez de se receber 300 euros [por mês], recebem-se 1200”. Por isso, adianta, não se sabe ao certo quantos imigrantes estarão, atualmente, em Beringel, sem trabalho.

Este aumento de população oriunda da Índia, do Paquistão e do Nepal tem vindo a verificar-se desde há dois anos, mas, em especial, neste último. Chegam à vila atraídos não só pelos trabalhos agrícolas, dada à proximidade, por exemplo, ao concelho de Ferreira do Alentejo, mas também devido à disponibilidade de casas para arrendar. De acordo com Vítor Besugo, “neste momento, em Beringel, estão arrendadas a imigrantes, pelo menos, 20 casas, sobrelotadas”. Algumas “terão condições, mais até do que eles teriam noutros sítios”, mas outras seguramente que não, como ficou “bem exposto no incêndio” que deflagrou na manhã do passado dia 4 num “casão onde foram encontrados 25 colchões”. “Por sorte não estava ninguém em casa, se é que podemos chamar àquilo casa, caso contrário teria havido uma verdadeira tragédia. Aquilo é o espelho de uma parte do que se passa aqui”.

O grande receio do autarca é que, a manter-se este grande fluxo de imigrantes porque “há casas para arrendar”, se de um momento para o outro essa oferta deixar de existir, “comecem a acampar no ‘Rossio’”, à semelhança do que se verifica em Lisboa, “uma realidade” que se julga “muito longínqua”, mas que “poderá muito bem acontecer aqui”.

 

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Autarca insiste na “fiscalização”

 

Vítor Besugo deixa bem claro, no entanto, que o seu “desabafo”, o seu “grito de revolta e de alerta”, não é “um ato xenófobo” e que as pessoas de Beringel “querem-nos aqui, mas com mudanças, não como as coisas estão”. E prova disso, assegura, são as medidas promovidas no sentido de integrarem quem chega de fora, nomeadamente, os cursos de português do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) ministrados na antiga escola primária da vila. Aquando do pedido de atestado de residência também são distribuídos panfletos em inglês e punjabi (dialeto adotado em países como Índia, Paquistão ou Nepal), em que são transmitidas “as regras básicas” da sociedade portuguesa “para que se integrem e não sejam mal vistos [pela população]”.

Há sensivelmente meia dúzia de meses também foram afixados, um pouco por toda a vila, também em inglês e punjabi, cartazes a apelar à correta deposição do lixo. Mas a mensagem não está a chegar aos destinatários. “A questão do lixo é uma coisa diária. Não conseguimos, limpamos todos os dias. As nossas aldeias do interior tiveram sempre uma grande dignidade. As pessoas sempre mantiveram a vila limpa e sempre tiveram muito orgulho nela e neste momento sentem-se tristes com isto, porque sabem que a junta tem tido trabalho para manter a vila limpa, mas que é uma luta desigual, não se consegue porque eles são muitos a sujar”, salienta, frisando que o facto de “esta ser uma população muito volátil” também cria alguns constrangimentos. “Se calhar quem frequentou o curso de português [e que teve conhecimento das regras] depois abala e vêm outros”, o que não permite que se “criem raízes”. “Isto tem a ver com a volatilidade destes imigrantes, estão sempre a rodar. Por exemplo, temos cá um grupo oriundo de África, Moçambique e Guiné, que já cá está há pelo menos sete ou oito meses e que já está integrado, portanto, tem a ver com a fixação, com a tal criação de raízes”, reforça.

O também coordenador distrital de Beja da Associação Nacional de Freguesias (Anafre) salienta que os autarcas têm vindo, por diversas vezes, “a chamar a atenção para os certificados de residência”, pelo facto de as testemunhas necessárias (dois eleitores da freguesia) para atestar que um imigrante reside em determinada morada “serem quase sempre as mesmas duas ou três para todos eles”, e relembra um caso, ocorrido no concelho de Odemira, onde, “numa semana, para a mesma casa, foram passados 93 atestados de residência”. O problema, diz, “é que o atestado refere-se à data em que foi passado”, pelo que se poderá alegar “que, passados dois ou três dias, eles mudaram para outra casa”.

Por isso, insiste o autarca, para além de outras medidas que possam vir a ser tomadas pelo Governo, “tem de haver fiscalização”. “Fiscalizem os locais onde vivem, porque se tiverem uma casa com condições, se calhar não vêm para a rua. Fiscalizem onde estão a trabalhar. Peçam-lhes os contratos de trabalho. Reforcem-se as fronteiras terrestes, porque este tipo de imigrantes entra por terra. Nós gostamos de receber as pessoas, são bem-vindas, precisamos delas, mas que sejam bem tratadas”.

Para além disso, acrescenta, “pessoas que há três, quatro anos, vieram para Beringel morar porque era um local sossegado, bonito, com escola para os miúdos, onde havia qualidade de vida”, neste momento já lhe dizem “que se vão embora porque não era isto que esperavam encontrar em Beringel, que é uma vila suja e que têm medo de vir ao centro porque à noite há muito álcool”.

 

O negócio das casas arrendadas e subarrendadas

 

Dona de uma pastelaria com porta aberta para o largo Dr. Carlos Moreira, Sílvia Aguiã vê “o que se passa diariamente no jardim”, um espaço que era ocupado, desde que se lembra, “por crianças e pessoas da terra”, onde “os pais deixavam que os filhos às vezes brincassem sozinhos, sem qualquer problema”. “Agora não, agora têm medo de ir ao jardim, quer seja de dia, quer seja de noite”.

Tendo sido emigrante seis anos na Bélgica e um na Suíça, a comerciante garante que não é “contra a imigração”, defende é que, tal como lhe aconteceu, os imigrantes devem adaptar-se ao país de acolhimento. “Nos sítios onde estive tive de respeitar as regras e eles aqui não fazem isso”, desabafa. E dá exemplos: “São bebedeiras todos os dias, desacatos entre eles, metem-se com as pessoas. São garrafas partidas, espalhadas pelas ruas, contentores atulhados. É uma situação que se está a descontrolar cada vez mais”. À noite, relata, “há quem ande à procura de comida nos contentores do lixo e de pontas de cigarro no chão”. Mas a culpa, sublinha, “não é dos imigrantes, porque eles têm de sobreviver”. Os “culpados são os patrões e quem lhes arrenda as casas. Não queria dizer isto, mas tenho de dizer, porque há aqui um negócio muito grande com as casas. A 120 ou 150 euros por cabeça em casas onde estão uns 20 ou 30… é uma vergonha. Há muita gente a encher os bolsos com estas pessoas. São todos seres humanos, estão-se a aproveitar desta gente, o que não é justo”.

José Tavares, cliente habitual da pastelaria, filho de ex-emigrantes nascido em França, entra na conversa. À semelhança do presidente da junta, defende que a solução passa pela “fiscalização”. “Devia haver um organismo qualquer para verificar de há condições de habitabilidade ou não”, considera, salientando que é do conhecimento geral que há quem esteja a adquirir casas na vila com a única finalidade de as arrendar a portugueses ou imigrantes, que depois as subarrendam. “Começámos por ter 50, 70, no máximo, 100 estrangeiros. Acolhemo-los através até de outras organizações, como o Grupo Motard de Beringel, de que faço parte. Num Natal até fizemos umas refeições, porque achámos que devíamos receber bem essas pessoas, só que, numa questão de meses, criou-se esta situação. Houve um boom, mas acho que devido a esta questão dos arrendamentos, do aproveitamento”, diz o operacional de indústria. Toda esta situação, afirma José Tavares, “desvaloriza a vila”. “As pessoas acabam por deixar de vir para aqui comprar uma casa com conforto, próxima da cidade”.

Maria Horta, que atravessa o “Rossio” apressada a caminho de uma assembleia-geral do clube desportivo da vila, recorda-se bem da noite de Consoada em que o grupo motard distribuiu refeições pela população imigrante. “Não sei onde é que estava tanta gente naquelas casas”, diz, admitindo que “as pessoas estão um bocado descontentes”. “A mim nunca me aconteceu nada, com o meu filho também não, mas vou muitas vezes ao parque da vila e se dantes ia a pé agora vou de carro”. Também já deixou de frequentar o “Rossio” ao fim do dia durante a semana ou nas tardes de sábado e domingo. “Estávamos na esplanada e nos bancos do ‘Rossio’ à vontade. Agora as pessoas não vêm porque se sentem desconfortáveis”, justifica a administrativa.

 

Criar raízes é fundamental para a integração

 

M., de 43 anos, natural do Paquistão, não trabalha há uns cinco meses, partilha uma casa sobrelotada – “já fomos 60 em duas casas, agora somos menos, a maior parte já se foi embora” –, mas é um claro exemplo de que a integração é possível, considera o presidente da Junta de Freguesia de Beringel, tanto assim é que nos meses em que não tem ocupação, enquanto aguarda o início de uma qualquer campanha agrícola, como acontece atualmente, vai fazendo alguns trabalhos “de pintura, limpeza ou jardinagem” para “as pessoas da vila”. M. chegou a Beringel há dois anos, depois de ter passado por vários países, à procura de melhores condições de vida, que lhe permitam, também, ajudar os três irmãos e as cinco irmãs, todos solteiros, que ficaram no Paquistão. Nenhum dos oito trabalha e dois “têm problemas mentais”, conta. Os pais já faleceram. “Quero continuar em Beringel, gosto de estar aqui, o único problema é o trabalho. Quero muito trabalhar”, assegura o ex-bordador fabril, que já frequentou os dois primeiros níveis do curso de português do IEFP e que se prepara agora para iniciar o terceiro.

“M. é a prova de uma coisa: raízes. Ele criou cá raízes. Toda a gente em Beringel o conhece, as pessoas, às vezes, dão-lhe trabalho, porque já cá está há mais tempo. É essa a diferença”, conclui Vítor Besugo.

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