Diário do Alentejo

Memória de Catarina Eufémia é amanhã evocada em Baleizão

24 de maio 2024 - 12:00
No 20.º aniversário do seu assassínio
Ilustração | Susa MonteiroIlustração | Susa Monteiro

“Que querem vocês daqui?” – gritou, a meio do faval, com um olhar flamejante de ódio e raiva, o tenente da Guarda Nacional Republicana, certo de que em nome da repressão fascista, o seu crime ficaria impune. “Pão, trabalho e paz!” – exclamou firme a ceifeira alentejana. Foi apenas o que disse. Um empurrão violento paral afastar a criança que tinha nos braços, e três tiros de metralhadora vararam de morte o corpo da jovem camponesa de 26 anos. Eram onze horas de uma manhã de Maio que nascera clara, mas, de súbito, se enublara de tragédia.

 

Escreveu José Moedas

 

Chamava-se Catarina Eufémia e o seu nome, rasgando clandestinamente a mordaça da censura do regime salazarista, depressa se fez símbolo e bandeira da luta antifascista do povo português. Chamava-se Catarina a mulher de Baleizão que as balas da metralhadora do tenente Carrajola assassinaram a 19 de Maio de 1954. Foi há vinte anos, vinte longos anos de tenebrosa ditadura, e só agora o seu nome se pode escrever livremente nos jornais e nas paredes com a tinta vermelha da libertação.

Por isso, este ano, amanhã durante todo o dia, a lembrança de Catarina não vai ser uma jornada de luto, antes uma festa do povo, porque, na iniludível tristeza da sua evocação, o nome de Catarina Eufémia será sinónimo das liberdades conquistadas no “25 de Abril”.

 

“Quem viu matar Catarina…”

 

“Quem viu matar Catarina/não perdoa a quem matou” – a palavra do poeta tinge a vermelho, como o rubro das papoilas, os muros do largo da aldeia de Baleizão. O povo jamais olvidou o assassínio da ceifeira e também o aparelho policial do fascismo não esqueceu a coragem da gente daquela terra alentejana, deixando, ao correr dos anos, marcas da sua criminosa organização policial, muitas delas irreparáveis, como é exemplo chocante a figura de Mariana Janeiro, ali residente, para sempre aniquilada nos centros motores pelas torturas da P.I.D.E..

A reportagem do “Expresso” ouviu, numa casa térrea da rua onde morava Catarina, uma sua companheira do dia em que a defesa dos legítimos direitos dos trabalhadores a levou para a morte. É Antónia Leandro. Contava então dezoito anos, era a mais nova do grupo. Com um à-vontade de quem (já) nada teme, relata-nos como viu matar Catarina:

- A gente queria melhores salários, o que ganhávamos era uma miséria. Não chegava a vinte escudos. Só quem passou por esse tempo. Quando se soube que no monte do Olival estava um rancho vindo de outra terra para trabalhar por jorna mais baixa na ceifa das favas, seguimos para lá. Queríamos falar com elas, explicar-lhes as nossas razões, convencê-las a não aceitar. Ao pé da estrada já havia guarda. Dissemos a nossa ideia e, a custo, lá deixaram avançar algumas de nós. Ainda não tínhamos dado muitos passos quando no ar soaram tiros. Pensamos recuar mas a Catarina acalmou-nos. Perdemos o medo com as suas palavras e então surgiu o tenente Carrajola de arma em punho. “Que querem vocês, suas burras?” – foi o que ele disse. “Queremos pão, trabalho e paz!” – respondeu a nossa companheira. O assassino travou-lhe o passo, deu-lhe um sopapo e, quando ela ia apanhar o lenço que caíra, empurrou-a, desviou a criança, disparando três tiros à queima-roupa. Todas nos deitámos no chão implorando paz, mas o tenente, desvairado, parecia não se contentar com a morte de Catarina. Atirou mais tiros, gritando: “Eu mato estas burras todas!”. Não sei como não houve mais mortes. Lembro-me de ter visto um homem dizendo: “Pare com isso! Acabe com esta desgraça!”. Contaram-me depois que fora o lavrador. Não sei, não o conhecia e nem mais o vi. Nem mesmo no dia em que fomos todas julgadas no tribunal de Beja e nos deram a pena de dezoito dias de prisão.

 

Jornalista ameaçado por tentar escrever a verdade

 

 

O jornalista que, na altura, mais directamente procurou informar-se das circunstâncias em que se deu o caso Catarina Eufémia, foi Melo Garrido, actual director do nosso colega “Diário do Alentejo” e, ao tempo, redactor do referido periódico bejense, e cujo testemunho aqui se deixa

– Julgo ter jornalisticamente dado contributo decisivo para que se não consumasse o silêncio que as autoridades pretendiam fazer sobre a tragédia. Está claro que a censura entrou imediatamente em acção mas com um pouco de sorte, de habilidade e, vamos lá, de coragem foi possível anular os seus propósitos. Recordo-me bem que os efeitos da Censura fizeram-se sentir mais duramente em Beja do que em Lisboa e no Porto. De facto, o “Diário do Alentejo” só dois dias após o acontecimento teve ordem para a ele se referir numa pequena notícia que, embora não sendo a que as autoridades e a Censura pretendiam, visto dizer claramente que fora o tenente Carrajola quem matara a trabalhadora de Baleizão, omitia os principais aspectos do assassinato. A “O Século”, de que então éramos correspondentes em Beja, coube o decisivo papel de desvendar muita da verdade do impressionante caro. No dia seguinte inseriu aquele jornal um pequena notícia que dava uma versão totalmente errada e tendenciosa, pos limitava-se a dizer que, numa desordem ocorrida em Baleizão, entre trabalhadores rurais, tinha sido mortalmente ferida uma mulher (não recordo se referia ou não o nome). Sabedor já da verdade dos factos, não me conformei e desloquei-me àquela aldeia, onde soube que essa notícia fora mandada transmitir pelo próprio tenente Carrajola e onde recolhi pormenores de muito interesse. De posse destes elementos concretos de informação, telefonei para “O Século” uma notícia que, apesar de haver sido cortada, já dava bem a ideia do que, na realidade, se passara e citava aquele oficial da G.N.R. como autor do crime. Foi com base nessa local que consegui convencer o censor nesta cidade a permitir que o “Diário do Alentejo”, dois dias depois, divulgasse a informação aludida. Porém, tive de enfrentar pronta reacção do comandante da G.N.R. em Beja, o qual me chamou ao seu gabinete pretendendo que desmentisse a notícia de “O Século” e lhe desse o nome das pessoas a quem tinha entrevistado em Baleizão e depusesse num auto. A tudo me recusei e sobre as pretendidas declarações em auto respondi que se alguém tinha de ser chamado a depôr era o director daquele jornal de Lisboa e não eu, uma vez que a notícia não vinha assinada... A minha firme recusa a essas imposições, valeu-me ameaças de prisão que incidiram até sobre a situação de minha mulher como professora do ensino secundário. Foi-me dado um prazo de 48 horas para desmentir a local e indicar os nomes das pessoas de Baleizão que me haviam informado. Não respeitei o ultimato. Verdade seja que as ameaças não se concretizaram. Direi ainda que a vingança da Censura foi rápida e drástica: quando do funeral de Catarina Eufémia do hospital de Beja para Quintos, houve cenas impressionantes e um repressão brutal da P.S.P., não sendo, todavia, possível aos jornais dar a conhecer esses incidentes. O principal, no entanto, havia sido alcançado: informar todo o País de que Catarina fora assassinada por um oficial da G.N.R., como repressão a um incidente que nunca chegou a ter quaisquer perigosas proporções. Há vinte anos era assim que se encaravam e se “resolviam” as reivindicações dos infelizes rurais do Baixo Alentejo…

 

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“Tentei evitar pior…”

 

O lavrador dr. Fernando Nunes Ribeiro, destituído do cargo de governador civil de Beja pela Junta de Salvação Nacional, e proprietário do monte onde se desenrolou a tragédia, assistiu também à morte de Catarina Eufémia. Precisamente na manhã, recente, do dia em que deu entrada no hospital de Beja, vítima de intoxicação com medicamentos (embora sem a gravidade a princípio presumida), tivemos ensejo de escutar a sua versão dos factos:

– Só eu sei o que tenho sofrido nestes últimos dias (aludia a acusações contra si formuladas no comício do l.º de Maio em Beja). Não aguento esta situação de injustiça, os ataques e a difamação de que estou a ser alvo sem motivo válido. Quando chamei a G. N. R. tive apenas o propósito de evitar um conflito entre os dois ranchos, pois o meu pagador José Joaquim Vedor viera avisar-me de que a situação no monte era grave. Eu estava doente, com fractura de costelas, mas levantei-me e fui ao monte num carro conduzido por esse meu colaborador. Não insinuei ao tenente que exercesse represálias mas somente que protegesse o rancho que de outra minha herdade do Penedo Gordo, o monte Curral, transferira para ali, pois em Baleizão ninguém queria trabalhar. Tentei acalmar o tenente mas, este, de cabeça perdida, não me quis atender, retorquindo que quem mandava agora ali era ele, eu já não mandava nada e as mulheres do Penedo haviam de trabalhar mesmo. Depois foi a lamentável tragédia. Eu não matei ninguém, porque é que me julgam de tal modo? Palavra, não sei como conseguirei resistir ao choque dessas falsas acusações!

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Catarina estava grávida?

 

A dúvida tem permanecido, embora a voz pública fizesse correr que Catarina Eufémia estava efectivamente em estado de gravidez. Um dos médicos autopsiantes, o dr. Henriques Pinheiro, personalidade que sempre defendeu princípios democráticos e por tal chegou a ser preterido no desempenho de funções públicas ligadas ao sector da saúde, garante-nos o contrário. Elemento da comissão concelhia do Movimento Democrático Português em Beja, aquele médico asseverou ao “Expresso”:

– Manda a verdade afirmar que não havia gravidez e os rumores que logo correram levaram a abrir o útero para melhor certificado, mas nada se confirmou. Só a opressão do regime fascista não deixou que o caso de imediato se esclarecesse. Aliás, parece-me que as pessoas deram mais importância a esse facto do que ao de ter sido Catarina assassinada pelas costas e positivamente à queima-roupa, como pude verificar.

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Elemento do comité local do P.C.P.

Outro ponto que esclarecemos foi o das actividades políticas da jovem camponesa alentejana, pois a reacção procurou espalhar a ideia de que se tratava de uma mulher do campo sem qualquer grau de consciência dos problemas sociais, tendo agido por impulso natural e não por obediência a noções claras das reivindicações socio-económicas que cumpriam à explorada classe rural.

Elementos do Partido Comunista Português, na altura desenvolvendo actividades na região, revelaram agora ao nosso jornal que Catarina Eufémia era elemento do comité local do P. C. P., com acção muito influente na zona e, de tal modo, que pôde levar consigo várias companheiras de luta, sem deixar de assumir a posição de vanguarda – atitude corajosa que lhe veio a custar a vida faz precisamente amanhã vinte anos.

 

***Catarina ficará para sempre como símbolo da resistência do povo alentejano à opressão de um regime fascista agora varrido da pátria portuguesa.

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