No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Hoje encontramo-nos com J..
Texto | José Serrano Foto | Ricardo Zambujo
“O sonho era ter uma vida melhor. Era só isso que eu queria, uma vida melhor”. Quem nos explica o que sente como evidente, de mãos abertas, como se de uma prece se tratasse, à altura dos olhos negros, é J.. O silêncio acompanha, agora, a cabeça caída entre os ombros do homem novo, com pouco mais de 30 anos, a sentir-se esgotado por ter de repetir, uma vez mais, a simplicidade de um óbvio que teima em não chegar, dia após dia após dia. Por que outra razão haveria de deixar a sua cidade, onde nasceu e sempre viveu? Por que outro motivo haveria de ficar sem a companhia do seu irmão e da sua irmã, do sobrinho querido que com tanta saudade recorda? Foi esse desígnio, o de uma vida melhor, do qual se sente merecedor, que o impeliu a aceitar a aventura de emigrar, proposta por um conterrâneo seu, a deixar o seu trabalho, a casa da família, a entrar para dentro de um avião que haveria de aterrar na capital de um país que dista nove milhares de quilómetros das suas raízes, na Índia. “Lá, era empregado numa empresa de aluguer de camiões. Fui ensinado pelos meus pais – já morreram os dois, tinha eu 20 anos – que, para além de termos de ser boas pessoas, devemos trabalhar arduamente, para conseguirmos amealhar dinheiro suficiente para abrir um negócio, por nossa conta – é este o percurso com que todos sonhamos. E trabalhar muito foi o que eu fiz. Mas na Índia há muita gente, não há trabalho para todos, e nos empregos que existem pagam-te, na maioria, uma miséria de dinheiro, que só dá, praticamente, para comprares comida”. Começou, então, a sonhar com a Europa, incentivado pelos relatos que lhe chegavam. Que no continente o trabalho era abundante e os salários generosos, que permitiam não só uma boa alimentação, como a possibilidade de se poder comprar roupa nova. Uma casa, imagine-se. Possivelmente, “se não tivermos medo de trabalhar, e eu não tenho”, uma loja – “Gostava tanto de ter um minimercado”.
Chegado a Lisboa, sozinho, nos finais de 2022, apanhou o autocarro para Beja. O contacto laboral que tinha funcionou sem qualquer problema. Começou, de imediato, a trabalhar no campo, em alguns dos olivais e amendoais que atapetam grande parte do Baixo Alentejo, onde chega a água do Alqueva. “Trabalhava oito horas por dia – mas era um trabalho pesado – e ganhava 36 euros. Os serviços eram sempre à volta da cidade, em Baleizão, em Ferreira do Alentejo, em Beringel, em Serpa. Trabalhei nessas terras todas, depois de chegar aqui. Mas nunca tive nas mãos dinheiro nenhum, não ficava com nada. Zero. Tudo o que ganhava era para pagar a comida e a minha cama”. “Benesses” que lhe eram providenciadas pelo patrão, também ele indiano. Foi assim durante algum tempo, a trabalhar para se alimentar e ter um teto. Apenas isso. Mas a precariedade haveria de se revelar mais severa e a dura realidade do emprego sazonal inclemente, pois menos de seis meses depois de chegar a Beja viu-se despedido. Que não havia, naquela altura, mais trabalho para ele, que tinha de se ir embora da camarata que o abrigava da noite – ao perder o trabalho perdeu o alojamento.
Foi nesse momento de aflição que soube que em seu nome não havia qualquer registo de descontos sociais, situação que hoje não o deixaria incrédulo. “A grande maioria dos patrões indianos e paquistaneses são muito más pessoas, poucos são bons…”. Pediu, então, ajuda aos seus irmãos. Enviaram-lhe dinheiro da Índia – “mas não me puderam emprestar muito, que também têm dificuldades” – para J. conseguir comprar comida e alugar uma cama. Mas essa parca quantia depressa acabou “e os meus amigos indianos, que fiz aqui, não têm tempo, nem posses, para me poderem ajudar, todos estão preocupados em manter o seu posto de trabalho, em lutar pela sua própria sobrevivência”. Procurou outros patrões de labores agrícolas, mas não era a altura de recrutar pessoal para fainas no campo. Ofereceu-se como empregado em cafés e restaurantes. “Mas, Portugal, aos indianos e paquistaneses, só lhes dá trabalho na agricultura” e a resposta era-lhe devolvida sempre da mesma maneira, de tal modo e com tanta previsibilidade que a frase, repetida vezes sem conta, fixou-se, juntamente com “bom dia”, “boa noite”, “quanto custa?” e “obrigado”, no seu acanhado vocabulário português: “não tem, não tem, não tem”. Não tem trabalho, entenda-se. Depois, pensou deixar Portugal, ir para outra cidade europeia, mas o passaporte de J. “estava perdido” e regressar ao seu país era inviável. Os turbilhões de acontecimentos negativos desmoronaram-lhe, pedra por pedra, as fundações do seu sonho europeu. E J. sentiu-se absolutamente perdido, imensamente frágil, assustadoramente indefeso, enrolando o medo noturno no corpo gelado, dorido pela rijeza do postal turístico da calçada portuguesa. Na rua. Em Beja.
A ajuda da Cáritas
Foi um cidadão português que, ao vê-lo dormir na rua, informou J. acerca dos serviços sociais da Câmara de Beja que lhe poderiam prestar apoio. Decidiu, então, relatar ao município a sua situação, tendo sido, a partir daí, ativada a resposta de alojamento no Centro de Acolhimento de Emergência Social (CAES) da cidade. Entrou no CAES a 30 de abril de 2022 e saiu no dia 12 de setembro, do ano seguinte, mês em que voltou, novamente, a arranjar trabalho nos olivais, com o respetivo alojamento.
“Saiu do CAES por vontade própria, pois quis autonomizar-se, mas continuou a frequentar, [tal como o fazia habitualmente], na Cáritas Diocesana de Beja, o espaço ‘Estórias’, por querer manter a relação de confiança que alicerçou com a equipa – e nós gostamos de o acompanhar, de ir sabendo dele”. Quem o diz é Inês Jacinto, psicóloga, técnica da Cáritas Diocesana de Beja, responsável pelo processo de J., que nos informa acerca das valências do drop-in “Estórias”, direcionado a pessoas em situação de sem-abrigo – “Um lugar de escuta, onde se desenvolvem competências profissionais, artísticas e de socialização com outros pares”. Pares, cujo número, de acordo com a técnica, tem vindo a aumentar: “Sem dúvida que há, atualmente, um fluxo maior de chegada de imigrantes a Beja, muito perpetuado pela ideia de que, aqui, é mais fácil arranjar documentos, um título de residência, ter uma vida melhor. Mas quando cá chegam veem que a história não é assim tão cor-de-rosa como a imaginaram, ao ouvi-la, pois a maioria dos imigrantes trabalha com base na sazonalidade”. Nesse sentido há, muitas vezes, por parte de quem aqui chega, vindo de fora, “um choque de realidade”, assim que sente a sua vida a complicar-se, sublinha Inês Jacinto. Uma história recorrente de sonhos desvanecidos, pela ausência periódica de trabalho. Ao encontrar-se nessa difícil situação, “há quem peça ajuda à família, que lhe providencie algum dinheiro, mas muitos dos familiares dos que aqui se encontram também estão em situações de pobreza, no seu país de origem. Têm, então, de recorrer a nós [Cáritas de Beja,] à câmara, às várias associações sociais que fazem parte do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo de Beja (Npisa)”, solicitando uma resposta a nível alimentar e de alojamento. Uma proteção social disponibilizada imensamente reconhecida por J.: “Ter ficado na rua foi a pior situação que alguma vez me aconteceu. Nunca imaginei que tal me poderia suceder. Fui-me abaixo, estava com uma grande depressão quando cheguei à Cáritas. Mas ali encontrei pessoas muito amáveis, que me ajudaram muito. Estou-lhes imensamente agradecido”.
Estava, precisamente, integrado no projeto CAES, a frequentar diariamente o espaço “Estórias” – “Para além de ser comunicativo e de fácil trato, é habilidoso em trabalhos manuais, gosta de fazer colares, pulseiras, tererés, com materiais diversos” –, quando J. foi convidado a integrar o grupo de 10 pessoas que, apoiado pelos três monitores da cooperativa cultural Chão Nosso, assina a autoria da exposição “Invisíveis – percursos para a visibilidade”. Mostra que, após ter concluído a sua apresentação ao público, em Beja, no final de janeiro, se pretende, agora, itinerante por outros concelhos da região.