Diário do Alentejo

Invisíveis: frenesim

09 de fevereiro 2024 -
A droga entrou na vida de Sérgio Monteiro aos 19 anos. A certa altura, viu-se a viver na rua. Com 48 anos, espera que tudo mude

No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Continuamos nesta semana com a história de Sérgio Monteiro.

 

Texto Marco Monteiro CândidoFotos Ricardo Zambujo

Manhã de 16 de novembro de 2023. Sérgio Monteiro, de 48 anos, passou a primeira noite sozinho, o “que esperava há muito” e não acontecia há bastante tempo. No silêncio da casa arrendada, o nervosismo, a ansiedade das primeiras vezes, tomou-lhe o corpo, franzino. “Estava contente e com medo ao mesmo tempo”. Este passo na sua vida, desejado, foi também uma mudança marcante. Sérgio estava no centro de alojamento de emergência social (CAES) da Cáritas Diocesana de Beja desde junho. Do movimento, da partilha e das conversas que tinha com os colegas nesta resposta social, viu-se numa realidade completamente nova: o sossego, o vazio, o silêncio. “Estava contente, mas com medo, ao mesmo tempo. Eu já tinha morado sozinho, na Suíça e em Portugal, mas estava com medo”.

Nessa noite, Sérgio era o único morador na casa em que arrendou um quarto, o único mobilado. Os restantes três quartos do apartamento estavam vazios, à espera de mobílias e de pessoas. “Foi o silêncio total, mas gostei. E agora é como a minha família diz: ‘não te deixes ficar na cama. Todos os sítios onde entregaste currículos, continua a ir lá’”.

O frenesim de uma vida em minutos A família de Sérgio, mesmo nos tempos em que não esteve fisicamente com ele, sempre teve uma presença fundamental no seu percurso, mas também no seu discurso. Desde os tempos de Santo Amador, no concelho de Moura, onde nasceu e viveu na infância, antes de partir para a Suíça. Na altura, os pais de Sérgio emigraram, ficando ele e o irmão mais velho entregues aos cuidados dos avós paternos. Os outros dois irmãos ficaram com os avós do lado da mãe. Apesar de estarem em casas diferentes, andavam sempre juntos, iam para a escola juntos. A partir do momento em que o seu pai obteve a autorização de residência para os levar, Sérgio e os irmãos foram partindo rumo à Suíça, do mais velho para o mais novo. “Consoante iam tendo os papéis, casas e dinheiro, os meus pais iam-nos levando, do mais velho para o mais novo”.

Quando chegou a sua vez, com 13 anos, depois de completar a 4.ª classe, Sérgio partiu. Esteve lá 22 anos. Assim que chegou, ingressou na escola, para continuar a estudar e aprender a nova língua, o francês. Durante pouco tempo. Não gostava. “O meu pai disse-me que teria que ir trabalhar”. O que aconteceu na Citröen/ /Fiat, como ajudante, a lavar e aspirar carros. Um ano e meio volvido, começou a trabalhar numa fábrica de frangos e perus, onde acabou por tirar “o curso de talhante”, entre 1992 e 1994. Ainda lá esteve mais um ano. A partir de aí foi só “saltar”. “Trabalhava aqui, trabalhava ali. Não estava bem. Uma pessoa recebia, não tinha responsabilidades, apenas dava 500 francos à minha mãe por estar em casa, ficava com 1000, o que para um rapaz de 19 anos… Comecei a meter-me com pessoas que fumavam haxixe, a fumar umas ganzas, comecei a gostar”. Aos 19 anos, na Suíça, e com dinheiro no bolso, Sérgio contactou pela primeira vez com o mundo das drogas. “E muito rapidamente chegou a heroína”.

Quem lhe vendia haxixe mostrou-lhe a nova droga pela primeira vez. Explicou o que era. Mas, no fim, disse que não estava a oferecer, já que a vendia. Nesse momento, Sérgio estava a ser consumido pela curiosidade. “Essa pessoa estava a fazer o quê? Estava-nos a encegueirar, a lançar o isco. Deu-nos um pedacinho a cada um, nem sequer quis que pagássemos. Fumei no carro dele e, meu Deus, o que eu vomitei nessa noite…”.

Nessa época, o seu irmão mais novo, quando o viu fumar heroína as primeiras vezes, alertou-o: “Qualquer dia estás a apanhar o comboio para Berna para ir comprar essa porcaria. Ele agora dá-te, mas qualquer dia estás a gastar o teu dinheiro”. A previsão do irmão mais novo concretizou-se ao fim de um mês e meio, dois meses. “Foi um afundanço”.

Voltando aos 500 francos que Sérgio entregava religiosamente para fazer face às despesas da casa. Sem o filho saber, a mãe abriu-lhe uma conta em Portugal, o que também fazia para os irmãos, onde depositava esse dinheiro. “Eu estava um dia em casa, já não trabalhava, e ouvi o carteiro. Vejo uma carta em meu nome, do banco português, e quando a abro: 600 contos [3000 euros]. A minha mãe não tinha gastado um tostão. Foi na hora: apanhei a minha mochila, não disse nada aos meus pais, e vim”. Isto entre 1996 e 1997, Sérgio já não se recorda ao certo. O que se lembra, bem, é que essa foi a sua primeira fuga. “Fugi e a minha mãe caiu na cama”. A viagem, essa, trouxe-o até Moura, onde apanhou um táxi para Espinho, no Norte do País, sem dinheiro. Chegados ao destino, confessou ao taxista que não tinha como lhe pagar, no momento, e que só no dia seguinte conseguiria levantar a quantia devida no banco. “Essa foi a primeira que eu fiz. A partir de aí foi um descalabro completo. Parava, começava, parava, começava…”. Também a partir de aí, a vida de Sérgio passar-se-ia entre Portugal e a Suíça, entre a heroína e a cocaína. Jornada feita de avanços e recuos, ao sabor do dinheiro que ganhava e que gastava na adição, entre idas e vindas da Suíça para Portugal, regressando ao país helvético quando se acabava o dinheiro.

Em 2013, fruto de uma relação que manteve durante algum tempo, nasceu o seu primeiro e único filho, agora com 10 anos. O mesmo filho que lhe mantém o foco para seguir em frente e ultrapassar os problemas que as dependências lhe trouxeram. Logo depois do nascimento, os consumos abrandaram. Tornaram-se mais raros, mas não desapareceram por completo.

Já em 2016, começou a trabalhar numa reserva de caça em que se fazia valer dos seus conhecimentos de talhante. “As pessoas iam ao fim de semana caçar javalis e depois pediam-me para arranjar as peças”. Foi um trabalho que o marcou. Não só porque ganhava bem, mas também porque o seu patrão foi quase como um pai para si. Ajudava-o financeiramente, mas também fez de tudo para que largasse a adição.

Até 2021, altura em que o patrão faleceu e Sérgio regressa a Portugal, os consumos continuaram, com viagens a território nacional. Numa dessas incursões, passou por Badajoz, rumo a Santo Amador, e não parou. Segundo Sérgio, seria aí que costumava comprar droga. Chegado a Santo Amador, e depois de uma saída à noite com amigos, começou a pensar que devia ter parado em Badajoz. Essa ideia ficou a ressoar-lhe na mente. A martelar no pensamento. Sem hesitar muito mais, rumou à cidade espanhola no seu carro. Em Espanha acabou por deixar o carro em troca de droga.

“Essa pessoa estava a fazer o quê? Estava-nos a encegueirar, a lançar o isco. Deu-nos um pedacinho a cada um, nem sequer quis que pagássemos. Fumei no carro dele e, meu Deus, o que eu vomitei nessa noite…”.Sérgio Monteiro

Foto| Ricardo ZambujoFoto| Ricardo Zambujo

O regresso a Portugal e o viver na rua “Enquanto não for por mim… Enquanto não se fecharem as portas todas, há certas pessoas que não tomam um rumo. E isso, comigo, teve que acontecer”. Em 2021, com o desaparecimento do patrão, o consumo recomeçou, principalmente, cocaína. Em agosto desse ano, decide vir para Portugal, para uma comunidade terapêutica, na margem sul do Tejo, na Quinta do Anjo, com o apoio da família. Esteve lá oito meses. Drogas duras, nunca mais lhes tocou. Passado esse tempo, veio “à deriva para Beja”. Sem perspetivas e com a família, que sempre esteve lá por ele, a assumir uma posição de irredutibilidade – que Sérgio compreende – acabou por pernoitar no “edifício da Refer (antiga Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Estig), imóvel abandonado há anos e cuja ocupação tem sido feita por pessoas em situação de sem-abrigo.

“Aquilo ali não há noite. A noite parece dia. Levam a noite barafustando, ‘garreando’. Durante o dia estava tudo bem. A partir das seis da tarde, as pessoas, depois de chegarem do trabalho, começavam a fumar, mudava tudo. Praticamente trabalhavam todos, indianos, paquistaneses. E todos bebiam muito álcool”.

A estadia de Sérgio no local durou cerca de três semanas, um mês. A saída foi precipitada por um episódio que dificilmente esquecerá, pelo medo que lhe causou. “Chegaram-me a ameaçar. Mandaram o placard abaixo [que tinha a fazer de porta], tinham uma faca tipo catana e pediram a medicação que tinha comigo, o “Rivotril” [um anticonvulsionante/ansiolítico cujo princípio ativo, clonazepam, está indicado para alguma sedação, relaxamento e efeito tranquilizante]. Disse-lhes que não tinha nada – estava escondido junto à minha barriga. ‘Vai ver o meu saco’, foi o que lhes disse, enquanto pensava: ‘Agora aqui sozinho vai-me acontecer alguma’. Já não dormi”. A noite foi passada a fumar, agitado, entre o espaço em que dormia e a rua. A decisão estava tomada: não podia continuar assim. No dia seguinte dirigiu-se à Cáritas Diocesana de Beja.

“Ele chegou até à equipa do projeto (…) numa altura frágil, porque tinha saído de uma comunidade terapêutica”. Segundo a coordenadora do projeto da Cáritas Diocesana de Beja “Estou tão perto que não me vês”, Filipa Duarte, o trabalho inicial passou por o conhecer. “Não é que o Sérgio não consiga fazer as coisas, mas [a questão] é como é que ele as mantém. O projeto de vida dele passava um pouco por aí, até para gerir toda a energia, a ansiedade com que ele vivia os eventos da vida dele. Quando ele vem está em situação de rua, sem teto, no edifício da antiga Estig”.

“Enquanto não for por mim… Enquanto não se fecharem as portas todas, há certas pessoas que não tomam um rumo. E isso, comigo, teve que acontecer”.

 

“Acho que em agosto vou abalar para a Suíça outra vez. (…) Mas estou com um pouco de medo, porque foi lá que estraguei tudo”.Sérgio Monteiro

Em junho de 2023 dá entrada no CAES da instituição, onde está até meio de novembro último. Ao longo desse tempo, em que os consumos ficaram cada vez mais para trás, também a aproximação à família fez, e faz, parte do projeto de vida de Sérgio, o que aconteceu. “Ele dizia que tinha um desejo, que era voltarem a estar juntos”. A reaproximação com os pais, os irmãos, mas também o voltar a ver o filho, tornar-se um exemplo para ele, está sempre presente no discurso de Sérgio. O filho tem agora 10 anos, Sérgio não está com ele desde 2021. As saudades são mais do que muitas, mas, por agora, ainda terão que aguentar mais um pouco. “A família sempre foi um fator muito central na vida dele, em todas as escolhas que fez e mesmo o desejo em voltar a recuperar isso. E daí o filho estar sempre muito presente. Era sempre uma preocupação de não o ver crescer e o medo”, até pelo seu percurso de vida, refere Filipa Duarte.

Durante o tempo em que esteve no CAES, Sérgio participou nos laboratórios (“Insilenciáveis – Narrativas de Memória”, “Improváveis – Expressões Criativas pela Ilustração” e “Click – Narrativas Visuais”) que a cooperativa cultural Chão Nosso promoveu e que resultaram na instalação artística “Invisíveis – percursos para a visibilidade”. Integrados no projeto em que Filipa Duarte é coordenadora, estes permitiram, na sua opinião, que Sérgio adquirisse ferramentas que são importantes, no contexto de agitação e frenesim da sua vida e da sua personalidade, como o “manter”, mais do que “o conseguir fazer”. “Manter a sua resistência, o que tinha para fazer, o não conseguir estar quieto”. E, como consequência, também disso, o Sérgio de agora é muito diferente do Sérgio de outrora. “Não conseguia estar sossegado no mesmo sítio, ouvir uma frase até ao fim e agora já consegue”. E o próprio tem noção dessa mudança na sua vida. “Adorei a experiência dos ‘Invisíveis’. Porque a pessoa só se concentra no eu, em desenrascar-se, e ali não. E aprendi muito. Sou uma pessoa em que se tenho que obter uma coisa, tem que ser logo. E ali não. Já tenho mais calma. Sei que as coisas hão de chegar”.

Cristina Taquelim, da Chão Nosso, trabalhou de perto com Sérgio durante os laboratórios. “Ele fala muito, mas diz pouco. Houve uma vez que, numa atividade com ele, lhe ofereci a palavra ‘devagar’. E ele ficou: ‘Devagar? Mas porquê?’. Porque és um sujeito com pressa, tens que viver mais devagar”. E a relação foi feita de altos e baixos, ao longo do projeto

“Ele é muito evasivo. O que acontecia era que, quando se sentia tocado, o Sérgio ficava, e sentia-se tocado muitas vezes. Foi uma das pessoas em que notei uma evolução e um aumento de compromisso com o projeto. Mas estivemos sempre assim, com altos e baixos”.

E remata: “O Sérgio tem muitos problemas de autoestima. É um indivíduo muito solitário também, todos eles são, mas ele é muito solitário, apesar de não parecer”.

Manhã de 6 de fevereiro de 2024. Noventa noites depois de ter voltado a viver sozinho, debaixo de um teto só seu, Sérgio já não está sozinho. Já não está em Beja. Voltou a Santo Amador, à casa dos pais, algo que lhe custa por ter 48 anos e “dar uma mão cheia de passos para trás”.

O que mudou, na sua vida, noventa noites depois de ter saído do CAES? “Nada, parece que não fiz nada”. O nada refere-se ao trabalho que ainda não apareceu, apesar da entrega incessante de currículos e do bater de porta em porta nessa busca. Se em tempos não planeava voltar à Suíça, onde o frenesim da sua vida começou, esse destino parece-lhe, cada vez mais, inevitável.

“Acho que em agosto vou abalar para a Suíça outra vez. Depende de como as coisas aqui correrem, mas o mais certo é ir embora. O meu filho quer-me ver e quer que eu vá para lá. É isso que me está a dar força para ir, mas estou com um pouco de medo, porque foi lá que estraguei tudo e tenho medo. Mas, se tiver que ir, vou”.

Situação de sem-abrigo

Em agosto do ano passado, a Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação Sem-Abrigo (Enipssa) divulgou o “Inquérito Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo”, com dados “referenciados à situação identificada a 31 de dezembro de 2022”. Segundo os números avançados nessa altura, o concelho de Beja estava em segundo lugar entre os 20 concelhos a nível nacional com mais pessoas em situação de sem-abrigo (PSSA), 663, apenas atrás de Lisboa, mas imediatamente à frente do Porto, que completava o top 3. No entanto, verificando a taxa por cada 1000 residentes, Vidigueira (com 21,61), Beja (19,79) e Alvito (11,06) surgiam em segundo, terceiro e quinto lugares, respetivamente, no top 10.

No entanto, no âmbito da compreensão do que é ser-se PSSA, há que compreender os conceitos de “sem teto” e “sem casa”, segundo a Enipssa: o primeiro corresponde a “pessoas a viver na rua, noutros espaços públicos (jardins, viadutos, estações de transportes públicos), abrigos de emergência (vagas de emergência em centros de alojamento) ou em locais precários (carros abandonados, vãos de escada, casas abandonadas); o segundo refere-se a “pessoas a viver em centros de alojamento temporário (inclui as respostas da Segurança Social ou outras de natureza similar, locais para indivíduos ou famílias onde a pernoita é limitada, sem acesso a alojamento de longa duração), em alojamentos específicos para pessoas sem casa (apartamentos de transição, onde a pernoita é limitada, sem acesso a alojamento de longa duração) ou em quartos pagos (total ou parcialmente) pelos serviços sociais ou por outras entidades”.

Assim, se o Alentejo apresentava, no final de 2022, 1411 pessoas sem teto (das 5975 a nível nacional), o concelho de Beja aparecia no primeiro lugar deste ranking do País, com 613 pessoas, e Vidigueira no 14.º posto, com 113. Das 4798 pessoas “sem casa” no País, Beja aparecia a meio da tabela (10.º lugar, com 50 pessoas) entre os 20 concelhos com mais casos. O Alentejo apresentava 114.

No que diz respeito ao perfil da PSSA, o documento caracteriza-a como sendo do sexo masculino, com idades compreendidas entre os 45 e 64 anos, solteiro, português.

No que diz respeito à escolaridade, a PSSA tem maioritariamente o ensino básico (2.º ou 3.º ciclo), estando na situação de sem-abrigo entre um a cinco anos.

Já no que concerne às causas, as principais correspondem a “desemprego ou precariedade no trabalho”, “dependência de álcool ou de substâncias psicoativas” e “ausência de suporte familiar”.

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