No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Continuamos nesta semana com a história de Sérgio Monteiro.
Texto Marco Monteiro CândidoFotos Ricardo Zambujo
Manhã de 16 de novembro de 2023. Sérgio Monteiro, de 48 anos, passou a primeira noite sozinho, o “que esperava há muito” e não acontecia há bastante tempo. No silêncio da casa arrendada, o nervosismo, a ansiedade das primeiras vezes, tomou-lhe o corpo, franzino. “Estava contente e com medo ao mesmo tempo”. Este passo na sua vida, desejado, foi também uma mudança marcante. Sérgio estava no centro de alojamento de emergência social (CAES) da Cáritas Diocesana de Beja desde junho. Do movimento, da partilha e das conversas que tinha com os colegas nesta resposta social, viu-se numa realidade completamente nova: o sossego, o vazio, o silêncio. “Estava contente, mas com medo, ao mesmo tempo. Eu já tinha morado sozinho, na Suíça e em Portugal, mas estava com medo”.
Nessa noite, Sérgio era o único morador na casa em que arrendou um quarto, o único mobilado. Os restantes três quartos do apartamento estavam vazios, à espera de mobílias e de pessoas. “Foi o silêncio total, mas gostei. E agora é como a minha família diz: ‘não te deixes ficar na cama. Todos os sítios onde entregaste currículos, continua a ir lá’”.
O frenesim de uma vida em minutos A família de Sérgio, mesmo nos tempos em que não esteve fisicamente com ele, sempre teve uma presença fundamental no seu percurso, mas também no seu discurso. Desde os tempos de Santo Amador, no concelho de Moura, onde nasceu e viveu na infância, antes de partir para a Suíça. Na altura, os pais de Sérgio emigraram, ficando ele e o irmão mais velho entregues aos cuidados dos avós paternos. Os outros dois irmãos ficaram com os avós do lado da mãe. Apesar de estarem em casas diferentes, andavam sempre juntos, iam para a escola juntos. A partir do momento em que o seu pai obteve a autorização de residência para os levar, Sérgio e os irmãos foram partindo rumo à Suíça, do mais velho para o mais novo. “Consoante iam tendo os papéis, casas e dinheiro, os meus pais iam-nos levando, do mais velho para o mais novo”.
Quando chegou a sua vez, com 13 anos, depois de completar a 4.ª classe, Sérgio partiu. Esteve lá 22 anos. Assim que chegou, ingressou na escola, para continuar a estudar e aprender a nova língua, o francês. Durante pouco tempo. Não gostava. “O meu pai disse-me que teria que ir trabalhar”. O que aconteceu na Citröen/ /Fiat, como ajudante, a lavar e aspirar carros. Um ano e meio volvido, começou a trabalhar numa fábrica de frangos e perus, onde acabou por tirar “o curso de talhante”, entre 1992 e 1994. Ainda lá esteve mais um ano. A partir de aí foi só “saltar”. “Trabalhava aqui, trabalhava ali. Não estava bem. Uma pessoa recebia, não tinha responsabilidades, apenas dava 500 francos à minha mãe por estar em casa, ficava com 1000, o que para um rapaz de 19 anos… Comecei a meter-me com pessoas que fumavam haxixe, a fumar umas ganzas, comecei a gostar”. Aos 19 anos, na Suíça, e com dinheiro no bolso, Sérgio contactou pela primeira vez com o mundo das drogas. “E muito rapidamente chegou a heroína”.
Quem lhe vendia haxixe mostrou-lhe a nova droga pela primeira vez. Explicou o que era. Mas, no fim, disse que não estava a oferecer, já que a vendia. Nesse momento, Sérgio estava a ser consumido pela curiosidade. “Essa pessoa estava a fazer o quê? Estava-nos a encegueirar, a lançar o isco. Deu-nos um pedacinho a cada um, nem sequer quis que pagássemos. Fumei no carro dele e, meu Deus, o que eu vomitei nessa noite…”.
Nessa época, o seu irmão mais novo, quando o viu fumar heroína as primeiras vezes, alertou-o: “Qualquer dia estás a apanhar o comboio para Berna para ir comprar essa porcaria. Ele agora dá-te, mas qualquer dia estás a gastar o teu dinheiro”. A previsão do irmão mais novo concretizou-se ao fim de um mês e meio, dois meses. “Foi um afundanço”.
Voltando aos 500 francos que Sérgio entregava religiosamente para fazer face às despesas da casa. Sem o filho saber, a mãe abriu-lhe uma conta em Portugal, o que também fazia para os irmãos, onde depositava esse dinheiro. “Eu estava um dia em casa, já não trabalhava, e ouvi o carteiro. Vejo uma carta em meu nome, do banco português, e quando a abro: 600 contos [3000 euros]. A minha mãe não tinha gastado um tostão. Foi na hora: apanhei a minha mochila, não disse nada aos meus pais, e vim”. Isto entre 1996 e 1997, Sérgio já não se recorda ao certo. O que se lembra, bem, é que essa foi a sua primeira fuga. “Fugi e a minha mãe caiu na cama”. A viagem, essa, trouxe-o até Moura, onde apanhou um táxi para Espinho, no Norte do País, sem dinheiro. Chegados ao destino, confessou ao taxista que não tinha como lhe pagar, no momento, e que só no dia seguinte conseguiria levantar a quantia devida no banco. “Essa foi a primeira que eu fiz. A partir de aí foi um descalabro completo. Parava, começava, parava, começava…”. Também a partir de aí, a vida de Sérgio passar-se-ia entre Portugal e a Suíça, entre a heroína e a cocaína. Jornada feita de avanços e recuos, ao sabor do dinheiro que ganhava e que gastava na adição, entre idas e vindas da Suíça para Portugal, regressando ao país helvético quando se acabava o dinheiro.
Em 2013, fruto de uma relação que manteve durante algum tempo, nasceu o seu primeiro e único filho, agora com 10 anos. O mesmo filho que lhe mantém o foco para seguir em frente e ultrapassar os problemas que as dependências lhe trouxeram. Logo depois do nascimento, os consumos abrandaram. Tornaram-se mais raros, mas não desapareceram por completo.
Já em 2016, começou a trabalhar numa reserva de caça em que se fazia valer dos seus conhecimentos de talhante. “As pessoas iam ao fim de semana caçar javalis e depois pediam-me para arranjar as peças”. Foi um trabalho que o marcou. Não só porque ganhava bem, mas também porque o seu patrão foi quase como um pai para si. Ajudava-o financeiramente, mas também fez de tudo para que largasse a adição.
Até 2021, altura em que o patrão faleceu e Sérgio regressa a Portugal, os consumos continuaram, com viagens a território nacional. Numa dessas incursões, passou por Badajoz, rumo a Santo Amador, e não parou. Segundo Sérgio, seria aí que costumava comprar droga. Chegado a Santo Amador, e depois de uma saída à noite com amigos, começou a pensar que devia ter parado em Badajoz. Essa ideia ficou a ressoar-lhe na mente. A martelar no pensamento. Sem hesitar muito mais, rumou à cidade espanhola no seu carro. Em Espanha acabou por deixar o carro em troca de droga.