Diário do Alentejo

entrudanças

09 de fevereiro 2024 - 08:00
Festival começa hoje, sexta-feira, às 18:00 horas, em Entradas, e decorre até domingoFoto| Ricardo Zambujo

“Comunidade, dança e harmonia”. São estas as palavras que a associação PédeXumbo, entidade organizadora, usa para descrever a edição deste ano do Entrudanças. A celebrar 20 anos desde o seu começo na vila de Entradas, em Castro Verde, o festival de inverno traz, neste fim de semana, uma luta pelo “baile na rua, sem fronteiras, sem barreiras” e “pelo baile das memórias e bailes do futuro”. O “Diário do Alentejo” esteve nas últimas sessões artísticas do projeto comunitário que o antecede, designado “Pessoas Cheias de Territórios”, em Entradas.

 

Texto Ana Filipa Sousa de Sousa

Fotos Ricardo Zambujo

 

O relógio da igreja Matriz de Entradas, freguesia do concelho de Castro Verde, faz soar duas badaladas. O calor é abrasador, atípico para os primeiros dias de fevereiro, e oriundo de um sol baixo que faz brilhar uns quantos raios intensos, em jeito de despedida, antes dos dias de frio e chuva que a meteorologia prevê. Uns metros à frente, no recreio da escola básica e jardim de infância da localidade, a turma de 1.º ciclo espera, ansiosamente, pela chegada de Lúcia Caroço e de João Garrinhas, artistas convidados para a edição deste ano de “Pessoas Cheias de Território”, da Associação PédeXumbo. Às 10 crianças da primária juntam-se agora os mais pequenos, entre os três e os cinco anos, do pré-escolar, e, consequentemente, os mais novos a participar no projeto.

“Hoje é a nossa última vez aqui, porque sabem o que é que acontece no sábado?”, pergunta Lúcia Caroço, atriz que, no último ano, tem trabalhado a técnica da dança no projeto da PédeXumbo. Rapidamente, pequenos gritos e gargalhadas respondem: “É o Entrudanças!”. “E o que é que vamos fazer no Entrudanças?”, volta a questionar. “Bailar!”, apregoam, em sintonia, as duas dezenas de crianças.

Neste ano, o tema do projeto artístico “Pessoas Cheias de Território”, iniciativa desenvolvida há 16 anos no âmbito do festival Entrudanças 2024, é “o baile” e, por isso, ao longo dos últimos meses Lúcia e João trabalharam sob “essa ideia do que é que é o baile, o que é que não é o baile, o que é que pode ser o baile, o que é que se faz no baile e que tipo de baile é que se conhece” com dois públicos distintos, as crianças e os idosos.

“Os idosos têm uma relação muito especial com os bailes e, então, foi uma viagem com as memórias deles muito gira, [por outro lado] os pequenos do jardim de infância e da primária têm uma relação muito mais distante, mas, ao mesmo tempo, como são esponjas e como são crianças, estão muito disponíveis a dançar, a mexer e a brincar. A dança e a arte também trazem a brincadeira e acho que é isso que valoriza estes projetos na comunidade”, realça, ao “Diário do Alentejo”, a também criadora.

“Ainda se lembram de onde é esta dança?”, pergunta Márcio Pereira, responsável de produção da associação e que acompanha as sessões artísticas nas escolas e lares. “É de Israel, muito bem. Hoje vamos repetir aquela que aprendemos na última vez que cá estivemos, a dança da Palestina. Pode ser?”, interroga Lúcia.A música, na pequena coluna portátil, começa a fazer-se ouvir. Contrariamente ao que era de esperar, nenhuma das crianças se distrai e, coordenadamente, a dança toma conta de cada um. A apresentação final contará com quatro atuações, “com uma música do Brasil, outra de Israel, da Palestina e uma alentejana”. “Cada pessoa vem do seu sítio e, por isso, estamos a trazer a dançar a ocupar o mundo e a ser um ponto de união”, recorda a atriz.

Ao “DA”, a coordenadora da PédeXumbo, Marta Guerreiro, recorda que este projeto artístico com a comunidade nasce como “âncora do Entrudanças” e com o propósito de ligar o próprio festival à população. “Percebemos que não queríamos, e não poderíamos, fazer um festival apenas de programação, queríamos um festival com e para as pessoas que aqui vivem também. Hoje em dia o festival não está só dentro das escolas, está também em contacto com lares, centros de dia, com a arte e com toda a comunidade que queira participar”, refere.

 

“Se não gostas de bailar, então toca a andar” Além das demonstrações no largo da Igreja, o “Pessoas Cheias de Território” contará ainda com uma “Manifestação pelo Baile” para “reivindicar o baile, a rua e o espaço público como um espaço a ocupar para a festa e não para a guerra, para estarmos em harmonia”.

“Lembram-se que vamos fazer uma manifestação pelo baile? Alguém sabe o que é uma manifestação?”, volta a perguntar Lúcia. “Sim, é quando muitas pessoas se juntam para lutarem por alguma coisa que querem”, assegura Rúbia, uma das alunas do 1.º ciclo.

De cartaz na mão, punhos cerrados e voz confiante os alunos ensaiam uma última vez o desfile, em forma de protesto, que antecederá à apresentação da edição deste ano de “Pessoas Cheias de Território”, sob o tema “Dançar Ocupando – O Baile”. Em rebuliço, e visivelmente entusiasmados, entoam, com orgulho, as frases escritas nos cartazes, enquanto rodopiam pelo recreio: “O baile é nosso” ou “Viva ao baile”.

À despedida, antes do “grande dia”, a turma de 1.º ciclo segue o exemplo da colega Catarina e decide trabalhar em novos cartazes e palavras de revolta. De faca na mão, uma vez que o x-ato “não corta”, a professora mete mãos à obra e, de um momento para o outro, a dança dá lugar às artes plásticas. Umas ruas acima, com vista para as planícies, os utentes do Lar Frei Manoel das Entradas também aguardam, com entusiasmo, a chegada da associação e dos dois artistas que há cinco semanas não lhes dão “descanso”. “Então, D. Maria, já tinha saudades nossas? Vamos lá para a sala para dançar um bocadinho”, diz Lúcia ao atravessar o corredor e ao cruzar-se com uma das utentes. “Vá andando que eu já vou. Vou só ao quarto pentear-me”, responde com um sorriso.

À pequena sala de atividades vão chegando, um a um. O espaço, que anteriormente parecia amplo, começa a encurtar-se e as técnicas apressam-se a reorganizar os assentos e as cadeiras de rodas para que todos participem. No círculo há quem olhe desconfiado e quem sorria sabendo o que está por vir.

“[Este projeto, permite] trazer a dança para as pessoas se libertarem, porque há muito constrangimento, principalmente, nos homens mais velhos, [fazer ver] o baile como um encontro entre pessoas e como forma de ocupar, em conjunto, espaços”, realça o videomaker que nesta edição abordou as técnicas de fotografia e vídeo, João Garrinhas.

Logo após o aquecimento, que à semelhança dos mais novos traz muitos sorrisos, gargalhadas e conversa, é hora de colocar o mastro no centro do grupo e distribuir o leque de fitas coloridas, pandeiretas e cartazes. “Vamos dançar?”, pergunta Lúcia. “Eu não posso”, responde uma das utentes atrás da atriz. “O quê? Eu já a vi dançar um milhão de vezes, de pé e na cadeira [de rodas], por isso vamos lá. Você vem aqui para o meio”, retorque.

Meio que a flutuar, sem tirarem os pés do chão, os participantes navegam em memórias e histórias felizes. Recordam, verbalizando por vezes, a altura em que os bailes, os tocadores, os convívios, as roupas e as músicas “eram boas”. Há quem se mantenha à margem, reticente pelo que vê e pelo que ouve. “Qual foi a música que dançámos na semana passada? Não se lembram?”, questiona João. Após um breve silêncio uma voz revela: “Foi o ‘Vai de Centro ao Centro’”.

Ao som da música, timidamente, algumas das fitas começam a abanar. Aos poucos a maioria dos utentes trauteia a canção, que conhece bem, e entrega-se ao ensaio. A destreza de antigamente já não os acompanha com tanta facilidade. Os “corajosos” que decidiram dançar, de mãos dadas, seguem a coreografia com atenção, assim como o fazia há uns anos, em tempo de mocidade, nos bailes da aldeia. Limpam-se as lágrimas dos olhos, como quem limpa as saudades de outrora.

Volta-se a perguntar sobre o conceito de manifestação e se alguém já participou em alguma. Poucos acenam a cabeça de forma positiva e só uma utente admite em voz alta que o fez “por política”. Canta-se uma moda antes do último adeus, uma vez que nem todos, face à logística da deslocação, poderão estar presentes, amanhã, na apresentação do projeto. Mais tarde, João Garrinhas fará sair um documentário sobre “Pessoas Cheias de Território” e “experiências de vídeo” realizadas pelos participantes.

Numa outra sala de convívio, o adeus da equipa artística dá lugar a momentos de descontração. Ainda que a televisão esteja como pano de fundo, a maioria dos utentes senta-se a conversar sobre o fim de semana que se avizinha, as modas e as danças de outros tempos.

De punho no ar, sorrisos no rosto e cartazes com frases de ordem, os cerca de 200 participantes, entre os três e os 103 anos, “estão prontos”. Que prossiga o baile.

 

A dançar há duas décadas

O Festival Entrudanças, em Castro Verde, promovido pela PédeXumbo – Associação para a Promoção da Música e da Dança, celebra neste ano duas décadas. Foi em 2004 que, com o pretexto de celebrar o Entrudo e de se trazer as “danças do mundo e outros saberes ligados às tradições, à música, aos instrumentos, ao canto, às manualidades” e ao baile “pela noite fora em bom espírito de folia carnavalesca”, o Entrudanças deixou a cidade eborense e “foi de corpo e alma para Entradas”.

“Este é um festival de danças tradicionais, de dança folclórica, que rumou para sul e que tenta provocar um Carnaval diferente que traz músicas do mundo e as relaciona com a comunidade local e com o que se faz localmente. O Entrudanças são três dias intensos, de muita partilha, dança, cante e gastronomia, associado também à ideia que esta vila de Entradas sempre foi conhecida por ser um dos locais da transumância e, por isso, nós há muito que começámos a abordar este conceito de transumância cultural”, explica, ao “DA”, a coordenadora da PédeXumbo.

Assim, o evento nasce com o propósito de trabalhar a dança tradicional, recuperando tradições há muito enraizadas na comunidade, e “provocar a comunicação não-verbal através do corpo sem grandes preocupações de performances”.

Volvidos 20 anos, segundo Marta Guerreiro, também diretora artística e responsável pela programação do festival, o balanço é “muito positivo”, uma vez que este “começou por ser muito pequenino, praticamente dentro do Centro Recreativo [e Cultural de Entradas], e com a sua continuação passou a ser um festival da vila, de quem lá vive e de outras pessoas de fora que também o tomam como seu”.

Neste ano, a temática “Dançar Ocupando em Harmonia” vem afirmar não só a ligação desta freguesia que “acolhe muito bem, que abraça, que recebe e que faz parte depois deste todo”, mas, sobretudo, o firmar posições em relação aos “contextos atuais”, numa altura em que “cada vez há mais crise de habitação e territórios de outros a serem ocupados”, mais especificamente o confronto entre Israel e Palestina.

Para os próximos três dias, Lúcia Caroço e João Garrinhas esperam “muita alegria, boa disposição, muita manifestação pelo baile, muito baile, dança, música, arte e, principalmente, muita comunidade”.

“[Acho] que vamos tocar nas gerações todas, porque temos um bocado esta máxima de estarmos a trabalhar [com participantes] dos três aos 103 anos, e vão juntar-se todos na rua e o momento vai ser intergeracional, também multicultural e multidisciplinar, porque cada pessoa traz o seu contributo”, garante o videomaker.

O projeto “Pessoas Cheias de Território” foi levado a cabo também no Centro de Dia de Entradas, na Associação de Respostas Terapêuticas, no Centro Escolar Dr. Francisco Alegre, em Castro Verde, nas salas C e D, no Centro Escolar n.º 1 de Castro Verde, nas salas A e B, e na Escola Básicas n.º 1 e Jardim de Infância de Santa Bárbara dos Padrões.

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