No final de outubro de 2023 a Cáritas Diocesana de Beja inaugurou uma exposição, intitulada “Invisíveis – percursos para a visibilidade”, que esteve patente no castelo de Beja até final de janeiro. Com produção da cooperativa Chão Nosso, o resultado final foi uma instalação “construída em torno de uma mão cheia de histórias e imagens partilhadas por 10 pessoas em situação de sem-abrigo”, mas também uma campanha de sensibilização, com os autorretratos dos protagonistas espalhados pela cidade de Beja. O objetivo? Convocar a comunidade, a sociedade, para a “urgência de inventar um outro mundo possível, mais fraterno e mais justo, onde todos, sem exceção, tenham um lugar digno para habitar”. O “Diário do Alentejo” decidiu dar voz e corpo às histórias dessas 10 pessoas, em situação de sem-abrigo, ao longo de 10 semanas. Para que, apesar de estarem tão perto, não sejam ignoradas. Fiquemos a conhecer Rodrigo Martins.
Texto | Ana Filipa Sousa de Sousa
Fotos | Ricardo Zambujo
De fratura em fratura, Rodrigo Martins aprendeu desde cedo a viver num mundo de adultos, longe do que sempre sonhou
“Construí sonhos que a máquina da vida destruiu”. É desta forma que Rodrigo Martins descreve os primeiros 21 anos da sua curta vida. Desde cedo aprendeu que ninguém é verdadeiramente dono de nada e que, por mais que se pense o contrário, nada é garantido. Descobriu pelas suas vivências que o ser do mesmo sangue não é sinónimo de ser família e que a vida, e o sucesso da mesma, é construída tendo como base o amor-próprio. De fratura em fratura, de desgosto em desgosto, a história de Rodrigo é feita de peças de puzzle que, por acasos, se foram perdendo e encontrando. Peças colocadas em sítios errados, pressionadas e partidas por força da insistência, por um momento, e desta vez, para que tudo desse certo. Que os sonhos resultassem. Que a vida fosse menos dura, menos difícil.
A infância sofrida
Rodrigo é o mais novo de seis irmãos. Cresceu num ambiente familiar conturbado, em que o álcool e as agressões eram marca assente nos seus dias. O pai, trabalhador independente e dono de um estabelecimento, em Silves, trabalhava no transporte de pão e bolos e, por vezes, quando chegava a casa depois de um dia a “beber”, agredia a mulher e os filhos. Antes de entrar na pré-primária os pais separaram-se, mas a situação de negligência física, emocional e escolar vivida na casa da mãe fez com que, um ano depois, quatro dos filhos, incluindo Rodrigo, na altura com seis anos, fossem institucionalizados em Alvor.
O tempo, daí em diante, passou a ser cada vez mais demorado. As horas não passavam, nem dentro nem fora da instituição, e na cabeça de Rodrigo foi-se materializando a ideia de que a vida não lhe seria fácil. “Na escola era aquilo que é habitual quando veem alguém que é diferente, não conseguem aceitar. Era muitas vezes gozado por estar numa instituição, por ter uma incapacidade de 60 por cento em termos psicológicos, por a minha família ser pobre... Gozavam com tudo o que podiam, basicamente”.
Contrariamente ao que seria de esperar, Rodrigo nunca deixou de gostar de estudar e apesar do diagnóstico de transtorno do défice de atenção com hiperatividade (TDHA) empenhava-se para “tirar notas superiores” e afastar, assim, um novo motivo de chacota. Porém, se dentro das salas de aula o ambiente era controlado, o receio de ser olhado depreciativamente ou de receber um comentário maldoso aumentava com a aproximação do intervalo, optando, para se proteger, em “passá-los ao pé de funcionários ou de professores”.
A crueldade dos colegas, causada em grande parte pela imaturidade e pelo desconhecimento do peso de determinadas palavras e atitudes, foi deixando marcas. Aos poucos, diz, foi ganhando “uma espécie de trauma” em “estar com outras crianças e jovens” e começou a isolar-se, o que ainda hoje se mantém.
“A certa altura, na escola, quando estava a passear sabia, que cada pessoa estava concentrada na sua vida, mas como tinha aquele sentimento começava a sentir-me observado [e a achar que estavam a falar sobre mim] ”.
Quando atingiu a maioridade, em 2021, escolheu deixar a instituição. Ambicionava ganhar a sua independência, regressar para junto da sua família e continuar os estudos, mas a vida trocou-lhe as voltas. “Tive ansiedade de querer liberdade, mas acabei por me dar mal”.
As amarras de um novo ciclo
No dia em que saiu do lar de acolhimento, com 50 euros oferecidos pela própria instituição, uma das irmãs deu-lhe boleia até à casa da mãe. Quando chegou percebeu que esta “não estava em condições” para o receber e durante “algum tempo” andou “a saltar”, sem residência definida, entre “casas de irmãos, amigos, conhecidos e desconhecidos”.
“O teto é de pladur e está a cair, é uma casa térrea e se formos ver o quintal tem uma tulha de sucata. A minha mãe é acumuladora, está a passar de carro, vê e traz, depois diz que vai vender à sucata para ganhar algum dinheiro, mas nunca chega a ir”.
Para ajudar a mãe, pouco tempo depois, Rodrigo regressou a casa. Por persistência da progenitora desistiu, no meio do 10.º ano, da escola e começou a trabalhar, tal como os seus irmãos. O ambiente em casa passou a ser tenso e as discussões diárias. Rodrigo não percebia a razão de algumas poupanças que a mãe fazia, como o porquê de só haver permissão para se “dar um banho por semana” e “mal lavar a roupa” e começou a questioná-la. A tensão aumentou e, pela primeira vez, Rodrigo foi expulso de casa.
Embora falador, é nesta parte da história que pouco tem a dizer. Magoa-o remexer em sentimentos que, apesar de estarem organizados, estão longe de cicatrizar. As pausas, como que a recompor acontecimentos na sua mente, dão lugar a sorrisos subtis de resignação. De olhos postos no chão conta que conseguiu restruturar a sua vida em Vila Real de Santo António, numa comunidade semelhante à da Cáritas Diocesana de Beja, “mas...”. Há sempre um “mas”.
“Arranjei um apartamento em Portimão, um T0, por 350 [euros], estava a trabalhar e efetivo numa cadeia de restauração de fast food e a receber à volta de 800 ou 900 euros. Estava com uma vida estável, mas, depois, a minha mãe... Quer dizer ,ela quando me pôs na rua desapareceu por dois anos e depois ligou-me a pedir desculpa pelo que tinha feito, a querer fazer as pazes comigo e a pedir para voltar para casa. E eu voltei”.
Rapidamente percebeu que não tinha tomado a melhor decisão. O “ambiente de paz” não durou mais do que “duas ou três semanas” e, sem se aperceber bem como, voltou a estar na rua outra vez. À semelhança do que já tinha acontecido, passado alguns dias o ciclo repetiu-se. Um telefonema, um pedido de desculpas e o voltar de Rodrigo para casa. “Voltei a estar nesta situação”, diz, conformado.
O passado dava sinais de que a qualquer momento, após outra discussão, o cenário iria repetir-se. Sem grandes surpresas, Rodrigo voltou a ser expulso de casa. “Agora voltámos a discutir, porque eu trabalhava na agricultura, em Silves, e a minha mãe queria o meu dinheiro todo e eu não o queria dar...”