Em 2023, no Centro Qualifica do Centro de Emprego e Formação Profissional de Beja, foram certificadas na modalidade de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências 28 pessoas de nacionalidade estrangeira – 16 imigrantes e 12 refugiados da Ucrânia. Luis Linares, Jose Marin, Yassir Bellali e Muhammad Azeem, que receberam os diplomas em meados de janeiro, contam ao “Diário do Alentejo” o que os motivou a obter um certificado escolar.
Texto Nélia Pedrosa
Dos principais critérios exigidos para a obtenção da nacionalidade portuguesa – residir legalmente em Portugal há, pelo menos, cinco anos, ter um contrato de trabalho e um curso de língua portuguesa – Luis Linares só não cumpria este último. Nascido na Venezuela há 37 anos, e no concelho de Ferreira do Alentejo desde o verão de 2018, onde chegou depois de ter respondido a um anúncio de emprego para uma empresa agrícola, decidiu então inscrever-se num processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), através do Centro Qualifica do Centro de Emprego e Formação Profissional de Beja. Em meados de janeiro recebeu o diploma que lhe dá equivalência ao 4.º ano de escolaridade, numa sessão realizada em Aljustrel, que contou com a presença do secretário de Estado do Trabalho, Miguel Fontes. Dentro de três, quatro meses, prosseguirá os estudos com o objetivo de obter equivalência ao 6.º ano, depois, ao 9.º e, por fim, ao 12.º.“É começar tudo do zero”, diz ao “Diário do Alentejo” (“DA”), sublinhando que a nacionalidade portuguesa, ainda que não seja a única justificação para a sua inscrição no processo de RVCC – que foi promovido pela entidade patronal e pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) –, lhe permitirá deslocar-se “com mais facilidade na União Europeia”. “É um dos principais motivos.Ter a nacionalidade europeia abre as portas de muitos outros países. Mas penso ficar em Portugal por muito tempo, embora possa ir a outro país [da Europa] e depois voltar. Gosto de estar aqui. Não é um país muito rico, mas é um país muito tranquilo. Mas teria feito o RVCC mesmo que não fosse a questão da nacionalidade, porque se temos uma melhor educação podemos optar por um trabalho melhor”. Que não seja, por exemplo, “tão pesado”, como a agricultura, frisa.
De acordo com dados disponibilizados ao “DA” pela Delegação Regional do Alentejo do IEFP, das 142 pessoas certificadas, em 2023, na modalidade de RVCC pelo Centro Qualifica do Centro de Emprego e Formação Profissional de Beja – 78 no RVCC escolar (44 ao nível básico e 34 de nível secundário) e 64 em RVCC profissional –, 28 eram de nacionalidade estrangeira, sendo “16 imigrantes (todos do género masculino) e 12 pessoas refugiadas da Ucrânia, com diversas nacionalidades”. Estas últimas chegaram a Portugal ao abrigo do regime de proteção temporária a cidadãos residentes naquele país, regime esse criado na sequência da invasão russa a 24 de fevereiro de 2022 e através do qual lhes é atribuído de forma automática um número de identificação fiscal (NIF), número de identificação da Segurança Social (NISS) e número de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Todos os 28 foram certificados na tipologia de B1 (4.º ano de escolaridade).
Língua portuguesa é “ferramenta essencial para o mercado de trabalho”
“Em 2023 iniciou-se o trabalho com refugiados e imigrantes na sequência das ações Programa de Língua de Acolhimento (PLA), com o objetivo de dotá-los de conhecimentos ao nível da língua portuguesa, ferramenta essencial para o mercado de trabalho. Posteriormente, poderão ver reconhecidas competências escolares de nível mais alto (6.º e 9.º anos) e profissionais, de modo a facilitar esta inserção social e laboral”, explica a delegação regional, adiantado que, “ao longo do tempo, tem-se registado um aumento da procura destes serviços devido ao envolvimento de empresas que empregam um elevado número de migrantes”. “Com possibilidade de recorrer ao PLA, os formandos ficam motivados não só para adquirir conhecimentos ao nível da língua portuguesa como, simultaneamente, sentem necessidade de ver reconhecidas as suas competências escolares/ /profissionais. A obtenção de um certificado escolar permite-lhes o acesso a ações de formação de nível técnico e adquirir competências até numa lógica de conversão profissional, em áreas mais ajustadas às necessidades do nosso mercado de trabalho”.
Atualmente o Centro Qualificado do Centro de Emprego e Formação Profissional de Beja está a trabalhar “com 50 candidatos estrangeiros em processo RVCC, verificando-se que muitas empresas já solicitam este processo para posteriormente poder certificá-los nas áreas técnicas, pelo que se prevê um aumento de inscrições”, adianta o IEFP. Estes candidatos são maioritariamente “oriundos da América do Sul, África e Ásia”.
Com formação superior em manutenção de equipamentos elétricos, Luis Linares trabalhava na indústria petrolífera como operador de maquinaria. Os primeiros anos, recorda o venezuelano, foram “de ouro”. “Em 2010/2011, o meu ordenado era o equivalente a sete salários mínimos, ou seja, eu era uma pessoa que tinha um bom ordenado, vivia muito bem”. Em 2014/2015, “com a economia a começar a cair, uma coisa impressionante”, o ordenado “já só dava para a comida, para mais nada”. “Tinha a minha casa própria, carro, tinha tudo. A minha esposa não precisava de trabalhar e a partir daquele momento teve de começar”. Com dois filhos, um deles ainda bebé, não teve outro “remédio” senão começar “procurar outras opções”. “A minha irmã morava na Madeira há mais de 24 anos e disse-me que se eu quisesse podia ficar lá com ela e começar a procurar um trabalho. Disse que não iria ganhar muito, mas seria um bocadinho melhor do que estava. Falei com a minha esposa e fui. Estive lá um mês, depois vi num jornal uma oferta de trabalho para o Vale da Rosa [em Ferreira do Alentejo] e vim”. A mulher chegou um ano depois, os filhos e os pais seis meses mais tarde. “A minha irmã também já aqui está. Quase toda a minha família direta”. Por isso, diz, a possibilidade de regressar ao país de origem, para já, não está nos seus planos.
Jose Marin, de 29 anos, chegou ao concelho de Ferreira do Alentejo em março do ano passado precisamente por intermédio de Luis Linares, seu amigo e vizinho na Venezuela. Mas esta não é sua primeira experiência fora do país. Esteve sete anos na Colômbia. Foi obrigado a sair da Venezuela em 2016 “devido à situação económica, aos problemas do país”. “Tenho um filho, hoje com nove anos, e tinha que o sustentar. Mas a situação na Colômbia também estava a ficar complicada e vim para Portugal experimentar”, justifica.
A trabalhar na mesma empresa agrícola do conterrâneo, mas com vasta experiência no ramo da restauração, viu no processo de RVCC uma oportunidade para conseguir um trabalho na sua área de eleição, para além de “adquirir mais conhecimento” e “melhorar o idioma”. “Gosto muito de gastronomia e o [processo] de RVCC vai permitir-me fazer uma formação profissional nessa área”, esclarece, adiantando que também faz parte dos seus planos mudar-se com a mulher, que chegou há sensivelmente três meses, para uma cidade “onde haja mais oportunidades de emprego”, como Aveiro, onde tem uma pessoa amiga, ou Porto. Mas o plano a longo prazo “é ficar em Portugal”, garante. “Estamos bem aqui. Quando cheguei pensei que a língua fosse mais complicada, mas não, até é parecida. O clima foi mais difícil. Na Venezuela temos 34 graus, durante todo o ano. Aqui, no inverno, temos um, dois”.
Guerra obrigou a “encontrar um plano B”
Yassir Bellali faz parte do grupo de 12 formandos refugiados que foram certificados em 2023 e que residem na Estrutura de Acolhimento Coletivo de Cuba, gerida pela santa casa da misericórdia local, ao abrigo do já mencionado regime de proteção temporária. Nascido há 23 anos em Marrocos, chegou à estrutura de acolhimento em novembro de 2022, vindo da capital ucraniana, Kiev, onde frequentava o quarto ano do curso de Medicina e onde também vivia o irmão, que entretanto conseguiu refúgio numa família de acolhimento na Alemanha.
A guerra, diz Yassir, obrigou-o a “encontrar um plano B”, e, uma vez que ainda não lhe foi atribuída a proteção temporária solicitada há mais de um ano, viu no processo de RVCC “uma oportunidade para melhorar” o futuro. Neste momento, à semelhança dos restantes formandos, tem equivalência ao 4.º ano do ensino básico, mas quer continuar a estudar até ver reconhecidas as suas competências ao nível do 12.º e, depois, fazer um curso de formação profissional em engenharia ou, até, regressar à universidade. Para já, o que mais anseia é por um trabalho. “Viver aqui sem trabalhar, sem um plano definido, é muito difícil”, desabafa.
“Estas estruturas de acolhimento coletivo são casas temporárias, isto é um sistema rotativo, temos capacidade para 28 pessoas, mas o objetivo principal é encontrar trabalho, autonomizar estes residentes, e é isso que tentamos fazer. Eles têm de ir trabalhar ou estudar. Quando uns saem, entram outros. Eu entrei em contacto com o Centro Qualifica do Centro de Emprego e Formação Profissional de Beja precisamente porque dois destes miúdos estavam completamente perdidos e queriam aprender uma profissão”, explica Cristiana Mimoso, técnica da referida estrutura de acolhimento, frisando que “a escolaridade deles até ao 12.º ano não é reconhecida em Portugal”. Para quem frequenta o ensino superior, “a Direção-Geral de Ensino Superior fez um protocolo com as universidades em que oferece bolsa de estudo a estes estudantes, onde se inclui alojamento, só que eles terão de começar do zero, começar tudo de novo. Se já tiverem o diploma, poderão tirar o mestrado”.
Uma semana depois de ter falado com o “Diário do Alentejo”, Yassir Bellali conseguiu o tão desejado emprego. Trabalha desde segunda-feira numa empresa de construção civil. “O principal objetivo era mesmo encontrar um trabalho para o manter seguro aqui em Portugal, porque ele não tem proteção temporária. Mas, agora, com um contrato de trabalho, pode fazer uma manifestação de interesse e é essa manifestação que vai mantê-lo seguro aqui. Mas ele é muito novo, e claro que quando falo com ele digo-lhe que o trabalho é fundamental, mas se conseguir conciliar com um curso de formação pós-laboral melhor”, reforça Cristina Mimoso. Segundo a técnica, o 4.º ano de escolaridade “ainda não dá grandes vantagens” aos formandos, mas “o 6.º ano” já lhes irá proporcionar algumas ofertas ao nível da formação profissional, o que depois facilitará o processo de inserção profissional.
Já Muhammad Azeem, outro dos refugiados certificados com o 4.º ano, nascido no Paquistão há quatro décadas, aguarda por estes dias a resposta a uma proposta de trabalho como programador em Ferreira do Alentejo. Muhammad foi dos primeiros refugiados a chegar a Portugal faz em abril dois anos. Está na estrutura de Cuba desde dezembro de 2022, depois de ter passado por Lisboa e Guarda. Na capital ucraniana era proprietário de dois restaurantes e três lojas, que foram completamente destruídos pela guerra. “Perdi tudo”, lamenta. O seu grande objetivo é, assim, arranjar trabalho para “ganhar dinheiro” e abrir o seu próprio restaurante, “recomeçar”, e a certificação de competências permite “melhorar a língua portuguesa”. “Qualquer trabalho, em restaurantes, supermercados, fábricas, na área da informática, tudo. Eu adoro trabalhar. Ando à procura, mas dizem sempre que não têm vaga. Pode ser em Cuba ou em outro local qualquer”, diz.
“O Muhammad está farto de procurar em restaurantes, em supermercados, mas aqui é muito complicado. Para já, há este estigma dos migrantes e depois colocam todas as pessoas no mesmo saco. Mas acho que há aqui uma grande lacuna. Recebemos estas pessoas, mas a língua portuguesa é fundamental, é uma ferramenta que tem de se facultar a estes residentes para que possam desenrascar-se no mundo profissional”, considera a técnica da Estrutura de Acolhimento Coletivo de Cuba.
Quanto ao futuro, tanto Yassir como Muhammad não pensam regressar à Ucrânia nem ao seu país de origem, onde têm os familiares. Querem refazer a vida em Portugal. Um país com um clima idêntico ao do Paquistão e Marrocos, sublinham. “O objetivo é ficar em Portugal definitivamente, já tenho uma namorada em Cuba. Gosto do País, as pessoas são simpáticas”, reforça Yassir. “Claro que não querem regressar ao país de origem. Foram à procura de um sonho e querem continuar atrás desse mesmo sonho”, conclui Cristiana Mimoso.